segunda-feira, 25 de junho de 2018

VASCULHAR O PASSADO- Por Augusto Mesquita

Há 90 anos que se conduz à direita em Portugal e Montemor participou na                                  campanha de sensibilização associada a esta mudança
Provavelmente já se questionou porque conduzimos à direita em Portugal ao contrário de outros países, como o Reino Unido, onde se conduz pela esquerda.
Circular pela esquerda é um hábito que já vem de há muitos anos na história da humanidade, possivelmente de épocas tão longínquas como o Egipto dos faraós, ou até mesmo da Grécia Antiga. Remonta a uma época em que era habitual que todos os que carregassem uma espada, um punhal, ou outro tipo de arma branca, a colocassem no cinto, do seu lado esquerdo. Assim, como 85 a 90 % dos humanos são destros, circular pelo lado esquerdo da estrada parecia ser algo sensato. Nunca se sabia com quem se iria cruzar nem quais as suas intenções, por isso era melhor que a pessoa passasse pelo seu lado direito, pois era mais fácil desembainhar a arma branca que estava “arrumada” no lado esquerdo.
Esse hábito converteu-se inclusivamente numa obrigação, quando no ano de 1300, o Papa Bonifácio VIII ordenou que os peregrinos que viajavam para Roma o fizessem pelo lado esquerdo.
Em 1756, foi regulamentada pela primeira vez a circulação em Inglaterra na London Bridge, construída pelos romanos sobre o Rio Tamisa, pelo que circular pela esquerda passou a ser lei na Terra de Sua Majestade.
 Países como os EUA e a França começaram ainda no século XVIII a circular pela direita.
 Na Europa, a França estava a braços com a sua revolução (1789 – 1799). No país, como em todo o Continente, era hábito circular pelo lado esquerdo, mas como os revolucionários decidiram mudar tudo (até o calendário e o nome dos meses), impuseram também a circulação pela direita. A aplicação desta lei foi também imposta nos países invadidos pelos franceses, no rol dos quais se inclui Portugal.
Reconquistada a soberania nacional após a derrota dos franceses na Batalha do Buçaco em Setembro de 1810, Portugal voltou à primeira forma e retomou a circulação do trânsito pelo lado esquerdo.
De acordo com o Portal das Curiosidades, em 1886 as Ordenações do Reino de D. Pedro II já estabeleciam regras de prioridade para coches, segues e liteiras, onde pela estreiteza da rua fosse preciso recuar.
A maior parte dos historiadores reconhece dois alemães, Kart Friedrich Benz e Gottlieb Wilhelm Daimier como os pioneiros do automóvel, mas foi o americano Henry Ford que construiu em 1893 o primeiro carro movido a gasolina.
 Decorridos dois anos, Portugal importou um exemplar do automóvel idealizado por Ford. O primeiro automóvel a circular em Portugal atingia uma velocidade máxima de 20 Km/H, e foi importado de Paris pelo IV Conde Avilez em 12 de Outubro de 1895. É um veículo da marca Panhard & Levassor, com o volante do lado esquerdo, e está exposto no Museu dos Transportes e Comunicações do Porto. Na primeira viagem que realizou entre Lisboa e Santiago do Cacém, terra natal do Conde de Avilez, este veículo atropelou um burro, molestando-o levemente.
 Um ano depois, a Vila Notável recebeu pela primeira vez um automóvel. Em Junho de 1896, o Rei D. Carlos deslocou-se no seu carro à Herdade Real da Adua. Foi a primeira vez que um automóvel circulou na nossa Terra. O “Panhard & Levassor” parou perto da Ermida de S. Lázaro para o monarca receber os cumprimentos das autoridades locais. Ali se juntou muita gente das redondezas e numeroso rapazio que, a correr, acompanhou o sensacional veículo quando este subiu a Rua de S. Lázaro, Terreiro dos Álamos e Rua Nova em direcção ao Rossio, seguindo depois para a Herdade Real da Adua, que nos princípios da República passou para o Património Municipal.
A pouco e pouco os automóveis foram substituindo os coches de tracção animal. Os cocheiros dos trens de aluguer e das diligências protestavam contra os sustos que os “bólides” causavam às suas parelhas, tendo mesmo aparecido uma quadra do poeta repentista Manuel Araújo que rimava a propósito do espanto dos animais: “Se um carro sem besta à frente / passa à frente resfolegante / besta de trem ou carroça / não me espanta que se espante!”.
No reinado de D. Carlos I surgiu o Regulamento sobre a Circulação de Automóveis, aprovado por Decreto de 1901, que ordenou o trânsito das viaturas de tracção animal.
Dez anos passados, o Diário do Governo de 17 de Junho de 1911 publicou um primeiro esboço do “Código da Estrada”. Neste regulamento, estabelecia-se (artigo 45.º) que a “velocidade dos automóveis não deverá exceder normalmente 20 quilómetros por hora dentro das povoações e 40 quilómetros por hora fora delas”. Os prevaricadores enfrentavam a dura multa de mil réis, caso fossem apanhados em excesso de velocidade. Mil réis, equivaliam a uns anos atrás a um escudo, ou seja, 0,5 cêntimo do euro.
 Mas, se esta legislação parece benévola vista a um século de distância, convém analisar melhor. Em 1911, seria “para sempre privado de conduzir automóveis” (artigo 63.º) o condutor que “atropelar alguém e não parar imediatamente para prestar socorros”, e que for “condenado por embriaguez, furto, roubo, abuso de confiança e burla”.
Este esboço do Código da Estrada recomendava aos condutores que avisassem o Automóvel Clube de Portugal (ACP) caso encontrassem estradas em mau estado, para que este participasse à Direcção de Obras Públicas. Por sua vez, o Guia Oficial do ACP de 1913, alertava os condutores para a inclinação de algumas rampas de Lisboa e Porto. As rampas da Rua das Taipas e da Rua da Cordoaria Velha eram as mais temidas, com pendentes de 20%.
A sinalização das estradas, iniciada em 1920 pela Cacuum Oil Company – a primeira companhia petrolífera a instalar-se em Portugal – tornou-se posteriormente, incumbência do Conselho Superior de Viação. Para além das indicações aos automobilistas, a sinalização era também utilizada para a promoção de locais turísticos.
Só em 1928 é que a designação de Código da Estrada é oficialmente atribuído em Decreto que introduz em Portugal, a obrigatoriedade de circulação pela direita das faixas de rodagem.
No dia 1 de Junho de 1928 a partir das 5,00 horas da manhã, a circulação nas estradas em Portugal passou a fazer-se pela direita. A nova regra de trânsito que alterou os hábitos dos portugueses, sobretudo dos condutores que na época eram mais de trinta e um mil (para vinte e oito mil veículos existentes), foi alvo de uma campanha de sensibilização organizada pelo Diário de Noticias. O DN, como jornal pioneiro naquilo que hoje se chama marketing editorial, organizou com o patrocínio da Vacuum Oil uma grande campanha nacional de sensibilização. Foram espalhados cartazes e faixas por todo o país, além de dedicar grande destaque nas suas páginas às novas regras de trânsito.
Como não podia deixar de ser, esta mudança profunda mereceu a atenção da imprensa. “Pela direita. Desde manhã que se anda ao contrário sem prejuízos dignos de registo. Agora é que isto se endireitou. Desde as 5 horas da manhã que tudo gira pela direita” dava conta nesse dia o Diário de Lisboa.
Com a censura em vigor, alguma imprensa da época aproveitou as novas regras de circulação para comentar a orientação política da Ditadura Militar.
Curiosamente foram os automobilistas da capital a estrear, de madrugada a condução à direita, com o resto do país a seguir o exemplo a partir da meia-noite desse dia.
Reza a história que pelo menos esta regra foi acolhida de forma pacífica pelos condutores “que uma vez perdido o receio de desastres que andava nas preocupações do público, girando tudo ao contrário, todos seguem a sua rota como dantes, com mais cautela como sempre deverá ser, mas também sem embaraços que mereçam registar-se à parte”.
A foto que ilustra o texto foi tirada na Rua 5 de Outubro da Vila Notável junto às bombas manuais da Vacuum Oil. A criação desta bomba de combustível é atribuída ao inventor americano.  Sylvanus Bowser. A sua invenção era capaz de medir e dispensar querosene (também designada por petróleo iluminante, que veio substituir o azeite na iluminação) de forma confiável, foi instalada a primeira vez num estabelecimento comercial em 5 de Setembro de 1885 numa mercearia de Ford Wayne nos EUA.
Como deve ter notado, a bomba de combustível foi inventada oito anos antes do automóvel, e não foi criada especificamente para abastecer veículos, mas sim para tornar o acto de comprar e vender querosene mais prático. Ela comportava até 160 litros de combustível. A bomba usava uma válvula de vidro, um desentupidor de borracha e uma torneira de metal, sendo operada manualmente.
Duas décadas depois, as bombas já eram chamadas pelos americanos de “estações de abastecimento”.
Em 1905 Bowser aperfeiçoou sua bomba, adicionando uma mangueira de borracha, tornando assim possível colocar combustível directamente no depósito dos carros. A partir desta descoberta as bombas foram evoluindo chegando ao patamar actual em que com um simples cartão multibanco podemos abastecer as nossas viaturas a qualquer momento.
A decisão do Governo de alterar a circulação nas estradas portuguesas para o lado direito, visava uniformizar a circulação com a dos países da Europa continental. Tal mudança foi implementada na maioria das suas colónias com excepção de Goa, Macau e Moçambique, que tinham fronteiras com países com circulação pela esquerda.
A “regra napoleónica” acabou por vingar e alastrar, sendo actualmente adoptada, segundo a ONU, em 129 países do mundo. Quem não foi na conversa de Napoleão Bonaparte foi a Inglaterra e mais 62 países, que continuam a preferir o velho costume do mundo greco-romano.

Augusto Mesquita
Junho/2018



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