quarta-feira, 4 de abril de 2018

UMA NOVA MEMÓRIA DO HELDER

Ficará para sempre a tua imagem, como, do mesmo modo, tu ficarás com a minha. Ficarei com a imagem de um rapaz bondoso, cortês e delicado, que ama, desinteressadamente, o seu semelhante, e que um dia, num baile, conheceu uma rapariga de igual postura e sentimentos.
Uma rapariga, um casaco e dois rapazes.
Por vezes e às vezes, sem saber ou pensar porquê, sou levado a pensar que já não consigo escrever mais uma crónica, porque esgotei as minhas memórias, as minhas peripécias ou até algumas asneiras que me tenham sensibilizado profundamente.
Esta madrugada, não sei porque sim, nem porque não, vi-me a dançar, não num baile qualquer de uma festa sem relevo, mas nas famosas Festas de Bencatel. Baile ao ar livre como convidava por ser Verão, com atuação da então famosa orquestra Bass, do Alandroal.
Recinto cheio, a abarrotar como convinha a um dançante como eu, que sendo pequenino, podia ser velhaco ou dançarino, velhaco penso que não era, e, a dançar não me ajeitava nada bem.
Naquela noite julguei ser uma exceção, ajeitei-me ou a parceira se ajeitou comigo, o que é certo é que "aquilo andou".
Tinha os meus dezassete anos e, de parceria com o meu primo Tói Galrito pensámos, dias antes, ir à festa a Bencatel.
A questão mais dificultosa era o transporte.
Eu, Hélder, tinha a motorizada do meu pai, que fora comprada ao Milho, um comerciante do Redondo, a primeira a entrar no Concelho, secundada por uma Cucciolo, comprada pelo professor Zé Jacinto, e o Tói, tinha a bicicleta de pedais do pai.
Mantenho ainda a motorizada, bicicleta a pedais com motor auxiliar, e auxiliava bem, raramente pedalava. Tinha duas mudanças, primeira e segunda, sem embraiagem. 
Foi uma carga de trabalhos para convencer o IMTT, para registá-la em meu nome, pois não se convenciam que uma bicicleta a pedais tivesse motor. Foi preciso fotografá-la e ainda hoje estou à espera da matrícula, que já é a terceira. O motor de marca Alpino, italiano, não mafioso, portou-se sempre bem e foi tão fiel, que há dois anos ainda trabalhou.
Logo que me seja possível - questão de tempo - será arranjada.
Com o meu pai chegou a ir de Terena, a Vila de Rei, Mortágua e a outras localidades negociar madeira.
Recordo-me, perfeitamente, da satisfação do meu pai, por numa dessas incursões ter encontrado, um patrício Alandroalense, a quem tratava por tu, que trabalhava nas finanças e estava hospedado na pensão onde o meu pai pernoitou. Fiz um enorme esforço de memória, mas consegui lembrar-me do nome.
Depois de já gozar do estatuto de poder andar na Alpino, o meu pai mandou-me a Faleiros. Ao regressar e na última curva da Cabeça de Ferro, deixei meter a roda da frente na berma, a bicicleta zizagueou, caí e fiquei com a face esquerda toda picada. A Alpino ficou na estrada e eu fui ribanceira abaixo.
Experimentei um das melhores sensações da minha vida e única naquela condição. Não sei quanto tempo tive desmaiado, o que posso afirmar é que ao acordar, via só névoa, não me lembrava de nada, nem onde estava, depois lentamente foi recuperando a visão e o conhecimento. Primeiro vi um chaparro envolto em denso nevoeiro, e, passado algum tempo vi o portão da horta do Azevedo, foi quando recuperei a consciência e tive a noção de ter caído.
Eh pá, desculpem-me, tenho que voltar ao Tói, e à ida para a festa para Bencatel, senão quando lá chegarmos a festa já tem terminado.
Posicionamos os transportes de modo, quando os tirássemos, ninguém desse por isso.
Pedalámos, e como era a descer, o esforço não era grande, até perto da ponte do Lucefécit. Aí ensaiamos uma espécie de reboque da bicicleta do Tói. Ligámos um cordel, ao sport da motorizada e ao quadro da pedaleira. Se isto resultasse o meu primo, não se esforçaria e chagávamos frescos a Bencatel.
Ao primeiro arranque, com o esticão do cordel, a motorizada abrandou um pouco a velocidade, fazendo aumentar a da pedaleira, que quase tocava na Alpino. Nova tentativa. Cordel partido Tói, no chão.
Começamos a esmorecer e ao pormos de parte esta ideia, surgindo outra. Disse para o Tói:
- Sobes até ao meio da ladeira do Pegolongo, com velocidade e colocas-te ao meio da estrada, sigo ao teu lado direito e abrando, nesse momento deitas a mão ao meu ombro esquerdo, já estou preparado e aguento-me.
Uma maravilha.
Resultou em cheio. Ladeira e curvas do Pegolongo, Canada tudo na "gaspeia".  Largamo-nos na Cruz Branca e voltámos ao mesmo sistema na Ladeira do Vale Pio.
Sucesso até às curvas, aí chegados, desorientamo-nos, cada um para seu lado, mas como era a subir, aguentámos as bicicletas e não caímos. O Tói, apanhou um tal susto, que já não quis mais ser rebocado.
Chegados a Bencatel, suados mas, por isso não minimizados, porque o cheiro a suor era um perfume usado na época, especialmente, pelos homens. Deixámos as viaturas em casa do tio Zé Maria, que era vendedor de bolos, de localidade em localidade e fora ajudante de padeiro em Terena.
Antes do baile, que começou cerca da meia noite, encontrámos o Romualdo, de Bencatel e padeiro em Terena e o Tóico, do Alandroal, rapaz que levava o correio e os telegramas a Terena.
Tínhamos para não darmos nas vistas, de saída de casa, ido em mangas de camisa. O meu primo Tói, muito mais gaiteiro e amigo de dança do que eu, começou a sentir-se arrependido de não ter corrido o risco de trazer o casaco. O padeiro ofereceu o seu casaco, que era castanho, já muito usado e comprido, seguido do Tóico, que vestia um casaco de fazenda quadriculada, clara, alternando com a cor castanha, novo e bonito
Antecipei-me e agarrei o casaco do Tóico.
Assentava-me "como uma lufa", até me fazia mais forte e elegante do nada que eu era.
Vi logo que o meu primo ficara "mosca".
A Bass começa a tocar e nós posicionamo-nos na fila da frente. Era uma multidão de rapazes ou homens, que alguns até me pareceram casados. Não estava habituado estas andanças, era uma estreia.
A primeira música a ser tocada foi "Cartas de Amor".
Ao meu cérebro afluiu o pensamento, como é que amanhã, me descarto, quando o meu pai der pela minha saída.
Um encanto.
 A rapaziada avançou desordenadamente e eu, encontrão da esquerda, encontrão da direita, senti-me voar e ser projetado para a frente de uma mocita, bonita, simples, sem pinturas e modestamente vestida.
Enchi o peito de ar, e, este enchimento acalmou-me e, permitiu que fizesse uma vénia com a mão direita, e curvando metade do corpo, dei a entender à rapariga se queria dançar comigo. A mocita levantou-se, suavemente, abriu um semi-sorriso, e com uma vénia de concordância veio ter comigo.
Demos, com alguma dificuldade, dois ou três passos para o meio da pista de dança, e começámos a dançar, ou melhor, no meu caso a fingir. Ao meu primeiro não acerto pedi-lhe desculpa, ao que a rapariga respondeu:
- Vejo que nesta questão de dançar é como eu, um aprendiz - não podia deixar de abrir um sorriso, pela suave frontalidade da mocita e respondi:
- Nem a isso chego, se me chamasse principiante, tinha acertado.- respondi intensificando mais o meu sorrir.
 - É curioso, também é assim que me classifico. Respondeu-me a rapariga com a mesma intensidade e sorridente.
Com este diálogo quase deixámos de dançar, quando sentimos um delicado encontrão, seguido de uma áspera entoação, "mexam-se". Não nos perturbamos e continuamos a fingir que dançávamos, sempre sorridentes e olhando um para o outro.
A série era composta de cinco músicas, e, entretanto acabara a primeira. Devido à atribulação da viagem sentia algum cansaço e aquela pausa caiu-me bem.
Sem que por isso tenhamos feito, sentimos as nossas mãos dadas, como um apoio reconfortante de momento.
Os nossos olhares cruzaram-se com a intensidade de quem se começa a conhecer. Pareciam querer entrar em cada um de nós, conhecer-nos interiormente, ler-nos a alma, verificar e conhecer os nossos sentimentos.
E, que bonito era o seu olhar, tão atraente e sereno. cujos os olhos, dentro das pálpebras e pestanas, mais pareciam ser uma criação divina, a deixar transparecer uma bondosa e serena alma.
A orquestra começa a tocar a segunda peça e soa a voz do Manelito Salomé, em "Teus olhos castanhos".
A rapariga num sorriso total, que lhe permitiu mostrar os seus dentes branquinhos, certinhos e bonitos, não se conteve e disse-me:
- Outra coincidência, os teus olhos castanhos são dum clarinho impressionante, oh desculpe, levada por esta encantadora melodia trateio por tu. 
- Até tem graça, ia-te mesmo tratar por tu. Antecipaste-te. Já notei esse clarinho, também, nos teus olhos, que fazem o teu rosto ainda mais bonito, - a rapariga abriu um leve sorriso, um sorriso transmissor de confiança, de quem se começa a entregar ou já se terá entregado, o que eu rececionei e guardei, até hoje, como uma das mais bonitas e sentidas recordações da minha juventude.  
Perguntei-lhe como se chamava, e, com uma voz melodiosa, respondeu-me: Celeste.
- Celeste, palavra ligada ao Céu. Serás tu um anjo em pessoa - a mocita sorrindo , aproximou mais o seu corpo do meu, deu-me um beijo na face direita, que instintivamente, retribui. Se um beijo dado por uma rapariga, até então me ruborizava, não me sucedeu com este beijo, que foi recebido como mais um elemento a amalgamar os nossos gestos, as nossas ideias, procedimentos e postura, ao mesmo tempo perguntou-me como me chamava. Quando disse o meu nome, teve esta expressão repetitiva:
- Hélder!, Hélder, nome tão bonito e só com duas sílabas, nunca o tinha ouvido.
Sorrindo disse-lhe:
- Mais um motivo para nunca mais nos esquecermos um do outro, - a moça envolveu-me num amoroso olhar, que por momentos paralisou o meu.
Nas outras músicas já não nos classificamos de principiantes. Acertávamos maravilhosamente e ninguém mais nos mandou mexer.
No decorrer destas, sem a inicial preocupação, de acertar a dança, pensava e refletia. Reflexões próprias e ainda receosas de um jovem de dezassete anos, na força da sua adolescência. Será, por estas coincidências, por este entendimento, que roça a perfeição, será esta rapariga a minha alma gémea? Mas de imediato surgia uma interrogação mais forte; poderá haver alma gémea entre dois seres de sexo oposto? E por esta reflexão me fiquei, de momento.  
Acabada a série fui levar a jovem ao seu lugar, e, antes de se sentar retribuiu-me a mesma vénia. 
Ambos ficámos com a sensação que na próxima serie seriamos, novamente, parceiros de dança.
Um imprevisto.
O meu primo, o Tói Galrito, tinha apanhado uma "tampa" e estava furioso por causa da questão do casaco. Atribuía o não ter dançado ao casado do Romualdo, do padeiro.  Reconheci a minha antecipação, e, recriminando-me, perguntei ao Tóico, se lhe podia dar o casaco, para a serie seguinte.
O meu primo de casaco novo vestido parecia outro, criando um novo ânimo. O olhar sorria-lhe, e, logo partiu tomando os lugares da frente para a próxima serie de músicas, deixando-nos juntos, comigo um pouco aborrecido, por também não querer ir dançar com o casaco do Romualdo vestido.
Logo após o começo da primeira música aparece o Tói, ainda mais furioso. Tinha levado outra "tampa", mesmo de casaco novo vestido. Ameaçava ir-se embora sem mim, e mal enfrentava o meu olhar.
- Isso não é do casaco, não escolheste bem o par. - disse-lhe o Tóico para o acalmar.  
- Escolhi, escolhi, foi buscar a rapariga que dançou com ele - respondeu.
- Oh primo da "minha alma", que sarilho me arranjaste, esta é de "bradar aos Céus". Com que cara vou eu, novamente, buscar a moça, com o mesmo casaco vestido.
Fiquei nervoso e confuso.
Pensei em não mais ir buscar a mocita e ir-me embora de Bencatel, mas cometia um ato de cobardia, que me iria para sempre recriminar, e, a rapariga não era disso merecedor. Resolvi enfrentar a realidade.
Estava a passar-se entre mim e a moça uma atração bonita e sincera, geradora de confiança e carinho, que me parecia mostrar o caminho para uma amizade duradoira ou mais do que isso, talvez o princípio de um namorico, que seria nova estreia para mim e, acreditava ser também para ela.
Vou, de consciência pesada, vestindo lentamente o casaco.
O meu cérebro, fervilhando, buscava em todas as direções a melhor solução, para não ferir o ânimo da Celeste, até que pareceu encontrar uma luminosa ideia:
- Diz a verdade, Hélder -. e com ele concordei.
A deceção.
Coloquei, novamente, na frente para ter melhor aceso à Celeste, e, já não levei tantos empurrões. Ao avistá-la fiz-lhe sinal, já sem vénia, para vir dançar. Levantou-se, com a mesma postura, mas sem o sorriso cativante da primeira série. Confundiu-me, e deixou-me em estado interrogativo, se estava ou não zangada comido.
Apesar de continuarmos a acertar, reinou, por momentos, um pesado silêncio entre nós, que me senti na obrigação de quebrar.
- Penso que a tua frieza, de agora, se deve ao teres reconhecido o casaco, que o meu primo trazia vestido, quando te veio buscar para dançar e que eu agora visto.
 A Celeste, mesmo dançando, afastou-se um pouco de mim e disse:
- Aquele moço é teu primo? porque veio buscar-me para dançar? que pensam vocês que eu sou? pensas por estar assim vestida, sou  alguma trapeira sem vergonha, que se entregaria a dois rapazes ao mesmo tempo?
Com dificuldade tentei impedi-la, dizendo-lhe.
- Pela amizade que neste baile nasceu e cresceu entre nós, deixa-me explicar - fiquei, surpreendentemente, animado porque bastou esta frase para a moça mudar o seu semblante, e eu parecia já ver a mesma mocita da primeira série.
Expliquei-lhe o porquê da questão do casaco ao que ela compreendendo respondeu-me:
- Foste solidário para com o teu primo, qualidade que já tinha lido na tua alma, na tua alma de bondoso rapaz -  interrompi e agradeci à Celeste pensando que iriamos continuar o nosso bonito diálogo. Mas a mocita continuou do mesmo modo magoada:
- Mas porque não me vieste buscar mesmo de casaco velho vestido? ou sem casaco, acaso tenho eu algum casaco nos ombros? não te chegou para me conheceres a minha modesta roupa? far-me-á mais feia ou menos decente? modificará a roupa, a postura e os sentimentos de alguém?
A Celeste pronunciava estas palavras, como a tentar desvincular-se de algo impossível, a que se sentia ligada intimamente, o que fez ainda crescer mais a minha admiração pela bondosa rapariga.
As palavras da Celeste soavam-me como uma sentença perdida, e condenatória para com o nosso princípio de idílio, que me levou a dizer-lhe:
Vejo Celeste que não me desculpas, diz-me se te vai restar algo de mim, se ficarei na tua lembrança?
A orquestra tocava no momento deste diálogo, a música "Beija-me, Beija-me muito".
A rapariga parou de dançar, de surpreendida que ficou com a minha pergunta, e sem me deixar as mãos, fulminou-me com o seu olhar, que me deixou paralisado e incapaz de pronunciar palavra.
- Ficará para sempre a tua imagem, como, do mesmo modo, tu ficarás com a minha. Ficarei com a imagem de um rapaz bondoso, cortês e delicado, que ama, desinteressadamente, o seu semelhante, e que um dia, num baile, conheceu uma rapariga de igual postura e sentimentos.
E, na voz do Manuelito Salomé, soava este bonito e sentimental extrato do bolero.
-"Beija-me, beija-me muito, como se fosse esta noite a última vez".
Os bonitos olhos da Celeste humedeceram, como a comunicarem aos meus a forte emoção que lhe ia na alma. Apertou-me as mãos com mais força e com a voz entristecida, disse-me;
- Nunca mais te beijarei, mas dou-te, agora e para sempre, o meu último e saudoso beijo.
Beijou-me na face esquerda, e sem dar tempo a que eu retribui-se, foi-se embora.
Quando cheguei ao pé dos meus companheiros, o padeiro habituado que estava a ver o meu rosto, perguntou-me :
Porque choraste, Hélder?
- Porque conheci  a minha alma gémea.
O regresso a casa.
Depois de arrumar a Alpino entrei, sorrateiramente, no meu quarto, às cinco da manhã, sem que dessem por isso ou julguei que não deram.
Tentei adormecer, mas ao fechar os olhos, via sempre a Celeste, bonita, simples e sorridente, sem casaco, como eu cheguei ao baile, e assim, em camisa, a devia ter ido buscar para dançar. Refleti naquele agradável e inesquecível acontecimento, e, concluí que entre mim e a Celeste, os nossos sentimentos apenas divergiram, temporariamente, na maneira de vestir, no uso do casaco emprestado. Nessa altura era eu aprendiz de ferrador, ofício que o meu pai exercia. Às sete e meia da manhã, o meu pai chamou-me para irmos para a oficina. O cansaço aliado ao sono, fez, ao cortar o primeiro casco de uma muar, que desse um golpe com o formão, no dedo polegar da mão esquerda, onde ainda se pode ver a cicatriz.
Ontem, dia 29-03-2018, senti, sem nenhum motivo, uma enorme frieza percorrer-me o corpo.
Observei as mãos e verifiquei a cicatriz do dedo polegar esquerdo, que me levou a esta saudosa recordação, que dedico aos meus primos e primas ainda vivos, e, que constituem o vértice cimeiro da pirâmide familiar, não esquecendo os filhos, dos que já não estão connosco, o Ricardo Galrito, em Faro, a Maria José Galrito. em Mafra  e o António Miguel Galrito, em Évora.
Hélder Salgado.
Terena, 30-03-2018.














2 comentários:

Anónimo disse...


Muito Bonito o Seu Sentir !...

Anónimo disse...


Talvez tivessem faltado uns "Acordes" de...

SPANISH EYES - WILLIE NELSON & JÚLIO IGLÉSIAS

(sendo que a côr seria Castanha, como se impõe...)