RECORDAÇÕES DO
HELDER
O MEU AMIGO zÉ
lARO
O leitor
interrogar-se-á porque eu, menino ainda, com uma diferença de idade de trinta e
tal anos, a roçar os quarenta, chamo de amigo ao Zé Laro.
Para ajudar, e
para que o leitor consiga compreender melhor esta pequena crónica, o que me faz
relembrar a figura do Zé Laro e do seu inseparável companheiro de taberna, o meu
parente Joaquim Pírico, são os copos de tinto, pois nunca os vi, nem eles me
contaram que tivessem bebido vinho de outra cor, isto nos anos cinquenta.
Na reflexão que
tenho vindo a fazer, e localizando-a nessa época, não hesito em afirmar que o
ambiente tabernal era o meio, aliás único, de distração do nosso Concelho,
interpolado uma vez por semana pelo cinema - claro, Cinema Peças - ou os bailes em épocas festivas. Estes dois
divertimentos também extensivos às senhoras e às raparigas, que fora deles eram
prisioneiras em suas próprias casas. Naturalmente terei que registar alguns atos bisbilhoteiros
e intrigantes que entre elas se registavam e, por vezes, eram extensivos aos
homens, cujo o volume de bisbilhotice, algumas vezes chegava ao posto da
guarda, normalmente nunca daí passando.
Foi a época da
minha geração, que vivi, que registei memorialmente e, como bola de neve
derretendo-se, alastra, distende-se, permitindo agora partilhá-la convosco.
O vinho, o tinto
era o principal elemento congregador das pessoas, apesar dos jogos das cartas e
do xito, onde o peixe frito, do rio ou do mar, pardelhas e bogas, petingas e
jaquinzinhos se salientavam, não conseguindo sobrepor-se ao expoente máximo dos
petiscos, os passarinhos fritos.
A cervejinha era só bebida em dias nomeados ou
em dia de festa, resistindo até ao aparecimento, primeiro nas feiras, depois
nos cafés, à imperial.
Dos desfile de
taberneiros que me aflorou no cérebro, vou recordar em Alandroal, o
incomparável, alegre e sempre bem-disposto, Domingos Cainó, e em Terena, o Quintino,
calmo e tranquilo, afável. Ambos predestinados para aquele, por vezes,
conflituoso ofício.
Quando alguém se
excedia, depois de beber demais, dizia-se que "tem mau vinho", condenando, sem justa causa, o saboroso e
popular néctar.
E, por falar em
conflitos deixem-me, por favor recordar dois episódios, um que presenciei e
outro que me vi envolvido, apesar da minha pouca idade.
O Neves tinha
acabado de adquirir o café/taberna ao senhor Torcato e, quando há uma mudança,
ou por haver algo novo, ou pela simpatia do taberneiro, ou ainda pela
curiosidade, há durante alguns dias um maior fluxo de pessoas.
O meu pai trazia à
renda a tapada da Vinha e eu nessa tarde estava no canto que esta faz com os
casões do velho Espada, hoje da família Neves, quando, de repente, ouço um
ruído fora do habitual. Assomando-me à parede, vejo sair aos trambolhões dois
homens, um ficando debaixo de outro.
- Queres comer? gritou o que estava por cima.
- Quero - disse o debaixo, sendo esmurrado três ou
quatro vezes.
A cena não passou
disto e ambos foram ao seu destino.
Estavam sentados,
à fresca cá fora duas pessoas, que ficaram impávidas. Devo confessar que foi o
ato, aliás, o único negativo que registei, em toda a minha vivência no nosso
Concelho, sentindo o coração pulsar aceleradamente, correspondendo à raiva ou
indignação que de mim se apoderou.
O outro conflito.
O ofício de
ferrador declinara e o meu pai fechara a oficina.
O meu tio Peças,
pai do Bráulio, trabalhara sempre e até então com o meu pai. Era preciso
arranjar uma solução, uma atividade para o meu tio.
Com a recente
compra de um prédio ao Zé Major, que albergava uma taberna, surgiu a
oportunidade.
Uma tarde
domingueira, já com o meu tio a desfrutar a taberna, levantou-se uma discussão,
entre dois fregueses. Estavam quase a chegar a "vias de facto" .
O meu tio sai,
apressado, detrás do balção e mete-se no meio dos dois fregueses. Não sei o que
me deu, nem como consegui manietar um deles. Consegui apanhar-lhe os dois
braços por trás das costas, e só o larguei quando o conflito serenou.
Um ou dois dias
depois da discussão, fiquei frente a frente, na rua do Jardim, com o Zé Baru, o
homem que tinha manietado. (Ponham-se no
meu papel e sintam como eu fiquei). Abrandei o passo olhei para o lado, mas
o arbusto mióporo estava cerrado em barda contínua e não permitia nenhuma fuga,
por entre ele.
Restava-me voltar
para trás e fugir ou enfrentar a situação. Já muito perto um do outro, o Zé
Baru parando, agradeceu-me, pela minha ação de evitar a briga.
São dois
acontecimentos que jamais esquecerei e, mais dois elos de ligação aos nossos
sítios.
Prossegue amanhã
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