A última tourada no Castelo de Terena
O redondel era, como sempre na época,
formado de carros de parelha e de varais na falta daqueles e situava-se à
direita de quem entra no Castelo. E para que nada faltasse tinha curros. E
tinha música, a banda do Alandroal.
Os músicos ocupavam um espaço da
muralha, junto à torre de Menagem e o cimo das escadas que lhe dão acesso.
Peço-vos para idealizarem as
dificuldades que o mestre da música deveria ter para dirigir a banda, porque eu
por mais voltas que dei ao cérebro, não o consigo posicionar de frente para
toda a banda.
Como introdução ao espectáculo,
esta toca um passo doble.
Os atrasados e já pingados
apressam-se com um passo de dança e uns sonantes olés.
Os já instalados nos carros voltam-se
e cotovelo contra cotovelo, ombro contra ombro, ensaia passos de dança e entoam
mais olés.
O espectáculo começara antes do
seu início.
Não sei se eu dancei ou se também
gritei olé, mas uma certeza vos digo, é que até hoje guardei na minha memória esta
cena, para hoje, aqui a poder relatar.
E o gado?
Lá estavam as vacas do velho Godinho.
Alguém observou e reflectiu sobre
o estado de instinto deste gado antes das touradas?
O seu olhar denunciador e
interrogativo permitia ver a qualquer observador, que lhe dedicasse um minuto
de atenção, o que lhe ia no seu interior.
Ali estavam encerradas à espera
que judiassem com elas, elas que sempre generosamente ofereciam o seu trabalho
na criação da riqueza dos donos.
Ali estavam à espera de um
tourejo, de uma pedrada ou de uma picadela ou de algumas serem agarradas e
assim vexadas na sua dignidade animal.
Uma ingratidão humana.
Finalmente a banda pára de tocar.
Tudo e todos acomodados para a
festa.
Soa o som do cornetim e saia a
primeira vaca.
O velho Godinho olhou de relanço
para o animal, quase o ignorou. Ao invés o Seabra mirou e remirou a vaca. Era a
mais nova das vacas. Quase uma bezerrinha. Acomodara-se junto ao que pensara
ser uma saída e não se enganara. Um carro cujos varais foram metidos dentro de outro
até à rabicha convidou-a a sair.
O som do cornetim ferira-lhe os
ouvidos. Nunca tinha tido semelhante dor, nem em pequenina, quando a mãe devido
à sua rabugice, se viu forçada a deitar-lhe leite para os ouvidos. Parecia
atordoada com aquele ambiente. Duas fortes aguilhadas, que se não fossem as
suas costelas, ter-lhe-iam furado os pulmões. Partiu a correr na esperança de
encontrar saída. Viu pessoas a fugirem, a gesticularem numa gritaria que ela,
vaca não conseguia perceber, nem porque estava ali encerrada sem conseguir
fugir.
Ah se pudesse ninguém a
agarraria, nem o dono.
E tinha medo.
Medo daquela multidão, daquela
gritaria infernal, das corridas desnorteadas em que se atropelavam uns aos
outros. As multidões sem norte são temíveis e ela tremia de medo.
Procurou um canto par se
proteger.
Uma forte pedrada fê-la
estremecer. Ouviu um sem fim de gargalhadas.
Um homem empertigado, altivo, que
parecia não ter medo veio ao seu encontro
- Eh vaca brava. - gritou.
- Brava? - pensou o pobre animal.
charrua e o arado ou até a
carreta, cuja canga de madeira sem encosto, tanta dor lhe fazia no cachaço, até a ferira e
agora era assim ofendida.
- Eh vaca brava - tornou o valentão.
Ali encerrada e a sofrer injúrias
atrás de injúrias, o animal não teve outro remédio senão defender-se.
Deu dois passos para trás e um
para a frente e um forte sopro. O valentão virou-se, fugiu e caiu. Mais
gargalhadas.
O ritual de tourejo e pedradas
repetiu-se durante algum tempo.
Um autêntico vexame para a jovem
vaca.
De repente a algazarra parou e
vozes de admiração soaram, como se surgisse uma surpresa ou outra distracção se
levantasse.
O Zé Seabra numa caninha de foguete, que antes
estourara e ainda cheirava a fumo, meteu uma nota de cem escudos e olhou
desafiando o velho Godinho.
A vaca estranhou o silêncio e
pensou desejando ir embora - Terá acabado
a festa?
Duzentos escudos gritou o dono
das vacas.
O animal, no seu instinto apercebera-se que
estava a ser alvo de negócio e uma imensa tristeza, acrescida por reconhecer a
voz do dono, apoderou-se dela.
Divertimento e negócio, a
ganharem dinheiro com o seu sofrimento.
Aproveitando a pequena pausa da
multidão devido à discussão da oferta, um vulto de pequena estatura,
dissimulando-se entre as maravilhas e as malvas, que ainda estavam erectas,
qual felino rastejante aproximando-se o mais perto possível da presa, para
depois de um salto, eficaz e certeiro, se apoderar dela, surge o padre
Sardinheiro.
- Duzentos escudos, - tinha fixado a ideia no dinheiro e dispôs-se a
apanhar a vaca.
A ceifa desse ano, só lhe rendera
setecentos e cinquenta escudos e ali, com um pequeno esforço ganharia duzentos.
O vinho não o deixava pensar em
mais nada senão no dinheiro.
O Chico Rijo, adivinhando,
seguia-o de perto. Já conhecia o hábito do padre Sardinheiro, pois já o tinha
socorrido algumas vezes e tinha a certeza, se ele apanhasse a vaca tinha o
jantarinho garantido.
A grande surpresa foi a do velho
Godinho, ao ver o padre Sardinheiro.
Tentou ainda que o Seabra
superasse o lance, mas este, matreiro, fechou-se e não subiu o montante.
Se o Sardinheiro apanhasse a vaca
era a terceira vez que o velho Godinho se enganava, pois tinha a certeza que só
um homem encharcado em álcool é que faria frente a um animal com as qualidades
daquela bezerra, que ele tão bem conhecia.
E mais uma vez perderia o duelo
com o Seabra.
Um uivo, semelhante ao de um lobo
esfomeado, soou no redondel, silenciou os presentes e amedrontou o animal, que
olhando para o lado, sentiu cair-lhe na cabeça o peso de um homem.
Nunca ninguém lhe tinha feito
isto.
No monte, na casa da herdade que
ela tanto gostava todos a acarinhavam.
Sentia-se humilhada e sem saber o que fazer ao intruso que
se lhe pendurara na cabeça.
Levantou-a com a intenção de sacudi-lo mas logo pensou - E se ao cair se magoa, se fica mal, se tem
filhos.
Quase ao mesmo tempo sentia ser agarrada pela cauda e pensou
um dar um coice, mas também se ficou pelas intenções, pelo mesmo motivo de não
magoar.
Baixou a cabeça e o homem largando-a, partiu a correr na
direcção da caninha, não a do Seabra, mas do velho Godinho que não teve outro
remédio senão largar o dinheiro.
O animal olhou para o sítio donde tinha saído, na esperança
de o ver aberto e estava. Ao entrar o Boa Tarde, dá-lhe com a cachamorra que a
fez dar um pequeno berro, ouvido pela mãe, que lhe correspondeu.
Esta acarinhou a filha,
lambendo-lhe as feridas e encostadas uma à outra, pareciam conformar-se com a
sua sorte.
Contou-me há pouco, o tio Zé
Godinho, desvendando o seu manancial de recordações, que as vacas choravam
convulsivamente e que ele chorara também.
Desde essa longínqua data não
mais houve touradas no Castelo de Terena.
Hélder Salgado
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