Uns Comprimidos para
Acalmar...
Um
colega e amigo, sabendo-me amante das letras, como ele, enviou-me este pequeno conto com pedido de
comentário, pois ainda não se sente seguro do modo como a escrita lhe sai. Em
particular encorajei-o, mas logo me ocorreu a ideia de o submeter a um grupo
mais vasto de leitores. Ficas assim, amigo Chico, com o pedido da sua
publicação no concorrido blog “Al Tejo” e a missão de me fazeres chegar
opiniões, boas ou más, dos ilustres e exigentes assíduos dessa página.
Sem
outro assunto, agradeço toda a atenção e envio um abraço com elevada estima e
consideração.
Teu
amigo
AC
XXX
Um dia destes fui procurado pela mulher do Zé Spinafre, meu
cliente e amigo desde que abri consultório na vila, já lá vão vinte anos.
Maria Rosa, que fez este ano sessenta e cinco primaveras, é
mais nova que o marido, embora aparente mais idade.
Diz ela sempre que leva a conversa ao seu moinho:
«Quem tem as canseiras todas desta vida são as mulheres!: quem
faz a lida da casa, quem trata da roupa e quem prepara o comer?..., e os
filhos, quem cuida deles e se rala nas aflições?».
Fiz um gesto com a cabeça em sinal de concordância, pensando
arrumar o assunto, mas Maria Rosa tinha-lhe dado corda.
«Eu vejo pelo meu homem; se tivesse que parir a perna de um
gaiato, que fosse, estava dez anos para se recompor.»
«A caminho da taberna não se cansa, homem dum raio que não sei
como o vinho não dá cabo dele.»
Bem, se uma pessoa não a interrompe, Maria Rosa é capaz de
estar uma tarde inteira a desancar no marido.
Ele, esguio, ainda bem tapado de cabelo que mantém o mesmo tom
castanho claro, embora salpicado de alguns brancos, não parece ter mais seis
anos que a patroa.
E pensa que o vinho não só não deu cabo dele, praga que tantas
vezes ela lhe rogou, como o tem ajudado a afastar, com algum resultado, o peso
dos anos.
Quando quer pôr a Maria Rosa ao rubro o Zé Spinafre
conhece-lhe o ponto fraco: -ó D. Maria Rosa ainda consegue mirar-se inteirinha
no espelho do guarda-fato?
Esta frase é sempre dita em sítio propício a fuga que evite
ser atingido com o que quer que seja que a mulher tenha à mão.
E, já de longe, atazana -lhe mais o juízo com a habitual
máxima que tanto a irrita: -se beberes um copinho, minguarás o teu corpinho!
Quando nesse dia fui atender o toque persistente da campainha
do consultório, ainda meio ensonado de uma pequena sesta que inadvertidamente
fizera encostado ao tampo da secretária, e dei de caras com a Maria Rosa
especada na minha frente, lembrei-me que se o espelho do guarda-fato tivesse as
medidas daquela porta o Zé Spinafre tinha razão.
Cerrei os dentes para conter o riso que quase se desenhou nos
lábios.
O semblante da visitante, não parecendo ser de doença,
anunciava timidez e pouco à vontade, pois lançou-me uma “boa tarde senhor doutor”
a gaguejar, em contradição com a sua desenvoltura e desembaraço habituais.
-Ora viva Maria Rosa!, -cumprimentei efusivamente, abafando
ainda um pequeno esgar que não contive ao vê-la ultrapassar a entrada do
consultório de esguelha. E o Zé por onde anda ele? – larguei à pressa, para
disfarçar.
«A estas horas… adivinhe lá o senhor doutor onde o
trangalhadanças pára!... não é difícil adi…vinhar, pois não?» – alvitrou com
desdém.
-Mas não é pelo Zé que me vem visitar, calculo… – sugeri de
imediato para evitar ouvir o rol de lamentações habituais sobre as tibiezas do
desgraçado – a senhora não me parece doente, embora seja claro que algo a
apoquenta… – deixei a frase no ar, com o propósito de a pôr à vontade.
«Aí é que o senhor doutor se engana. É mesmo pelo meu Zé que
eu cá venho – fez uma pausa no discurso e depois continuou – ...e também por
mim que ando com ele pelos cabelos!»
Maria Rosa estava vermelha que nem um pimentão, sentada à
minha frente do outro lado da secretária, com a voz e as mãos trémulas de um
nervosismo que não lhe conhecia.
-Acalme-se mulher que só a morte nesta vida não tem remédio –
argumentei em jeito de consolo e compreensão, procurando transmitir confiança.
Mas é assim tão grave o problema que vocês têm?... …que eu saiba saúde não vos
falta e os filhos estão criados e arrumados, o que é um grande descanso.
O Zé de vez em quando entorna uns copos, é verdade, mas, com a
idade dele, se mal não lhe fez, mal já não lhe fará!
«Quando o Zé entorna uns copos quem paga sou eu, senhor doutor»
– frisou em surdina, inclinada na minha direção e sondando os quatro cantos do
consultório, denunciando receio em ser ouvida.
«Olhe Dr. Joaquim, o senhor sabe muito bem o que acontece às
mulheres na minha idade – afirmou com os olhos pregados no tampo da secretária
– quando à noite me deito na minha cama
é para dormir e descansar do muito que ainda trabalho durante o dia; mas o
desavergonhado do Zé quando recolhe à noite com o grão na asa, o que acontece
com alguma frequência, vem com ideias malucas da taberna e o que quer é
paródia, não me deixando sossegar… estou-me a fazer entender, não estou senhor
doutor?» – ultrapassada a barreira inicial do desabafo, mostrava-se agora calma
e segura de si.
Eu ouvia atentamente, não fazendo qualquer comentário, mas já
prevendo o fim daquela “consulta”.
«Preciso da sua ajuda para o acalmar – sublinhou com um timbre
de voz em crescendo e fixando-me nos olhos – o senhor terá, com certeza, para
aí uns comprimidos que lhe cortem esse efeito endiabrado que o vinho lhe provoca
e que não me deixa pregar olho.»
«Garanto-lhe que ele não saberá de nada…» – sussurrou desta
vez com voz quase inaudível, ainda assim não fosse o marido estar a ouvi-la.
Foi então a minha vez de olhar fixamente o tampo da
secretária, cogitando como me iria safar da embrulhada que viera ter comigo,
naquele princípio de tarde calma, mas que tão inesperadamente animada se
tornara.
-Esses comprimidos não se podem receitar sem mais nem menos e
a qualquer pessoa – afirmei com ar austero e profissional, de quem domina o
assunto com à vontade.
E insisti, com aparência de preocupação para sugerir alguma
cautela e receio:
-Por vezes o seu efeito com o álcool pode ser contraproducente
e desastroso…
…tenho que pensar bem no caso e apanhar o Zé a jeito de lhe
mandar analisar o sangue – fui dizendo ao mesmo tempo que me levantava da
cadeira em direção à porta, dando a entender que a “consulta” terminara.
Maria Rosa saiu sorridente, confiante no meu interesse e
competência em encontrar remédio eficaz para a sua “preocupação”.
Quando fechei a porta suspirei de alívio e sorri, em silêncio,
com o desejo de paródia que a vinhaça provocava no meu amigo Zé Sspinafre.
Paródia inocente…, com certeza!
2 comentários:
Um dia destes ... (presumo que em tempo recente) assim se queixou do seu marido a D.Maria Rosa.
Estava o Doutor bem aviado se fosse no tempo em que no Alandroal existiam 17 (DEZASSETE!!!) Tabernas/Adegas.
Uma boa tarde para todos e parabéns ao Autor pela excelente prosa, que li e reli.
Tói da Dadinha
OBS.
Que o Alentejo é uma terra de muitos tintos já o sabemos e vamos todos vivendo. Ainda ontem isso aconteceu por ocasião dos xixaros.
É uma das nossas raízes profundas. E ainda bem que assim é, porque é afinal uma das raízes libertadoras que se incorporou e mais se incorpora na vida dos nossos homens e mulheres. Como a Maria Rosa e o seu dom José destes tempos.
Pode ser que esteja enganado, mas este conto tem leveza tem simplicidade e tem um fio narrativo condutor suficientemente atrativo.
Sobra-lhe, porém, em realismo novo, o que porventura lhe faltará em magia essa capacidade única de descer do céu à terra e de subir da terra ao céu por via da arte e da parte mágico- mística da literatura. Diria pois que já anda mas ainda não saiu para voar.
O que, aliás, não tem nada de mal. Todos os escritores começaram assim e por andar à procura de uma voz própria enquanto saída para fazer o seu próprio caminho. A tal coisa que só se faz (e se aprende) caminhando...
Vou somente acrescentar que, a Maria Rosa, no papel de refilona, incansável trabalhadora e confidente no consultório do médico, com uma tal idade (e ainda com tanto para viver) devia dar-nos a perceber que com «a sua paródia inocente» estaria, porém, muito a tempo de aceitar que a beleza do amor tem um sitio único de partilha e de preferência: a Cama. Onde "um sim" vale tudo mas "de um não" pouco ou nada sobra.
O tal lugar onde melhor seria que os tais comprimidos tivessem uma diferente utilidade. Mesmo correndo os riscos com que o médico a advertiu. Embora eu daqui fique, por ora, a congeminar que o médico também deve ter pensado nisso para «as novas marias rosas» que lhe irão aparecer a fazer tais queixinhas.
Com as minhas melhores saudações ao Amigo do nosso Amigo AC. E, claro, com o Al tejo a fazer a ponte entre as duas margens. A da criação literária. E a da sua fruição livre. Em qualquer idade das nossas vidas curtas.
Antonio Neves Berbem
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