As Memórias de Maio saíram mais curtas do que é costume e fogem ao registo
local/regional que tem sido o seu tom dominante.
As comemorações do Dia da
Marinha e os flaches televisivos que passam diariamente na RTP, intitulados
Memórias da Revolução, fizeram com que o azimute da nossa lembrança apontasse
em direcção a Lisboa, para o mês de Maio de 1974. Prestávamos, então, serviço
militar na Armada, mais precisamente na Força de Fuzileiros do Continente,
unidade instalada no Alfeite.
Acontece também que o Diário
de Notícias está a assinalar os seus 10 anos de existência, o que nos abriu o
apetite de consultar um álbum que adquirimos há vários anos e que contem
primeiras páginas do DN, desde a sua fundação (Dezembro de 1864) até ao ano de
1984.
Quisemos ver qual foi o
tratamento jornalístico que o DN deu ao dia 1º de Maio de 1974 e
acrescentar-lhe algumas imagens que temos na nossa memória.
Quando queremos revisitar, de
uma forma rápida, a História contemporânea, socorremo-nos frequentemente desta
e de outras compilações de jornais. Para lá da sua importância histórica,
encontramos ali, de uma forma bem viva, a cor das diferentes épocas, desde a
Monarquia Constitucional até à 2ª República, passando pela 1ª República e
Estado Novo.
É curioso verificar como os
jornais reflectem, com mais ou menos rigor, a vida quotidiana das cidades e dos
países, com as suas grandezas e as suas misérias. Reler jornais acaba por ser
um exercício de memória, misturando a actividade politica com as grandes
catástrofes, os avanços científicos com os resultados desportivos, a
sinistralidade com a grande corrupção e outro tipo de crimes. Consultar, por
exemplo, as primeiras páginas do DN é passarmos em revista as Grandes Guerras
Mundiais, mas também a prisão do Gungunhana betou a chegada do Homem à Lua. A
par das grandes parangonas que noticiaram o 28 de Maio ou o 25 de Abril, surgem
manchetes que falam da “Maldição de Macbeth”, que reduziu a escombros o Teatro
D. Maria, ou as que exaltam as grandes vitórias europeias do Benfica.
Mas voltemos ao 1º de Maio de
1974. O Diário de Notícias do dia 3, sexta-feira, dava destaque à grande
manifestação popular ocorrida na capital, utilizando frases como “ A Grande
Lição do Povo” ou “Impressionante Demonstração de Civismo de Norte a Sul do
País”.
No desenvolvimento da
notícia, o DN dizia que o 1ºde Maio fora um teste ao novo regime saído do 25 de
Abril e acrescentava que, contrariando certos slogans que falavam de um Maio
vermelho e sangrento, a jornada foi de alegria e de esperança. Segundo aquele
jornal, o povo português acabara de dar, de norte a sul do país, uma prova
inequívoca de maturidade política. O Dia do Trabalhador tinha sido comemorado
em liberdade, com grandeza, dignidade e um civismo que gerou admiração.
Como tivemos oportunidade de
atrás referir, nessa altura prestávamos serviço militar na Marinha, que nos
permitiu acompanhar de perto muito daquilo que ía acontecendo num e noutro lado
do Tejo. Nesse dia 1º de Maio, estávamos em Lisboa. Pudemo-nos aperceber do
ambiente que se respirava na capital e testemunhar o que foi aquela
impressionante manifestação. Ficamos com a sensação de ter presenciado um
desses episódios raros que ficam registados para sempre na História.
De um modo geral, as pessoas
estavam felizes, solidárias. Aqui e ali, vislumbrava-se um sentimento de
incredulidade perante auilo que estava a acontecer.
Das janelas dos velhos
prédios da Almirante Reis e dos andares das modernas avenidas choviam flores,
muitas flores. O vermelho era a cor dominante. Das portas e das janelas do
ré-do-chão, ofereciam-se generosamente garrafas e copos de água a quem passava
mais sequioso.
Naquela tarde soalheira de
Maio, um mar de gente veio para a rua expressar o seu entusiamo e respirar toda aquela
atmosfera de esperança. Uns empunhavam cartazes ou bandeiras. Muitos ostentavam
cravos vermelhos ao peito. Viam-se também muitas dessas rubras flores nas mãos
de mulheres e crianças. Outras vezes os cravos serviam de ornamento aos
automóveis u surgiam enfiados nos canos das espingardas dos militares.
Independentemente do
posicionamento político de cada um, uma coisa parece saltar à vista: o 1º de
Maio de 1974 foi daqueles dias que dificilmente se repetirá na História do
nosso país.
A mesma página do Diário de
Notícias dava conta da amnistia para desertores e refractários, que tinha sido
determinada pela Junta de Salvação Nacional.
Este assunto é-nos
particularmente caro, já que o cargo que desempenhávamos na Marinha tinha a ver
com a resolução de problemas de ordem disciplinar, incluindo situações de
ausência ou deserção.
DE vários cantos do mundo,
especialmente de países europeus, começaram a apresentar-se homens, parte deles
muito jovens que tinham decidido “dar o salto” para o lado de lá da fronteira.
Uns por não quererem participar na guerra de África; outros, pelas mais
diversas razões. Alguns deles tinham trabalho e família constituída no
estrangeiro.
Às dezenas, iam-se amontoando
às portas dos gabinetes, ou dispersavam-se pela parada, á espera que lhe resolvessem
a situação militar. Com frequência deparávamo-nos com gente jovem de barba e
cabelos compridos, calças à boca-de-sino e outra indumentária pouco ortodoxa
numa unidade militar.
Para os serviços da Marinha
foram longas e árduas semanas a dar andamento a processo, de modo a
possibilitar a passagem à vida civil daquele “exército” de gente.
Foram tempos de mudança, com
todas as dificuldades que as mudanças implicam. Dentro dos Quartéis cresciam as
reivindicações do pessoal militar, em particular dos grumetes e marinheiros.
Pretendia-se esbater regalias entre oficiais, sargentos e praças. Houve
momentos de alguma tensão e mesmo alguma violência.
Ao saber-se da anunciada
amnistia, no interior das prisões militares fervilhava o desejo de sair dali
para fora. O ambiente prisional era difícil. Aos presos por deserção,
juntavam-se outros reclusos detidos pelos mais diversos tipos de delinquência.
A mistura dos mais veteranos com alguns ainda imberbes era pouco salutar. Quem
ainda não tinha a escola, ficava a sabê-la toda, no pior dos sentidos.
Como o estimado leitor pode
imaginar, há aqui matéria que dava pano para mangas. Talvez um dia possamos voltar
a este tema com mais detalhe.
Até breve
Vitor Guita – Maio 2015
Publicado in “Montemorense” – maio 2015 – transcrição autorizada
pelo Autor
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