As suspeitas de corrupção que
caiem sobre as elites da indústria futebolística mundial fizeram tilintar
algumas campainhas da nossa memória e levaram-nos a recordar outros tempos em
que o mundo do futebol se afigurava mais genuíno, salutar, bem distante da
actual loucura dos mercados.
A propósito, veio-me à
lembrança aquela célebre equipa do Sport Lisboa e Benfica, apenas composta por
jogadores nacionais e que conquistou, pela primeira vez, a Taça dos Clubes
Campeões Europeus. Muitos dos estimados leitores lembrar-se-ão, por certo, de
nomes como Costa Pereira, Mário João, Ângelo, Neto, Germano, Cruz, José
Augusto, Santana, Águas, Coluna, Cavém.
Com toda a propriedade, era
possível afirmar que se tratou, até àquela data, da maior vitória do futebol
português.
A recente conquista da
Champions League pela equipa do Barcelona veio reforçar ainda mais a vontade
que sentimos de recuar até 1961, já que foi precisamente contra a equipa do
Barça que, nesse ano já distante, o Benfica conquistou o primeiro título de
campeão europeu.
Se o espelho retrovisor da
nossa memória não nos atraiçoa, a emocionante final disputou-se em Berna, no
Estádio Wankdorf , perante cerca de 35 mil espectadores, com os espanhóis em
larga maioria .
Como é que isto está tão
presente? – Interroga-se o leitor. Há episódios que permanecem indelevelmente
gravados na nossa lembrança. Em 1961, tínhamos 12 anos de idade. As televisões,
em Montemor eram escassas. Existia um número reduzido de aparelhos em certas
casas particulares, nalgumas lojas de eletrodomésticos e também nos maiores
cafés e tabernas da vila.
Para a rapaziada mais miúda,
tratava-se de uma verdadeira odisseia conseguir ver um programa do princípio a
fim, especialmente as séries mais apreciadas: Robin dos Bosques, As Aventuras
de Zorro, Fúria, Bonanza, etc… Íamos saltitando de café em café, de taberna em
taberna, à espera que a condescendência dos respectivos proprietários ou
empregados nos deixasse poisar por ali.
Sorrateiramente, a miudagem
lá se ia escondendo debaixo das mesas ou noutro recanto qualquer, sempre com um
olho no televisor e outro na rua, ainda assim não aparecesse algum polícia.
A final de Berna, nunca mais
vamos esquecer. Vimo-la debaixo de uma mesa, na conhecidíssima Casa Frango,
situada na Rua do Poço do Passo. Fernando Eurico Medronheira, dono do
estabelecimento, era um dos homens que manifestava maior tolerância face à
presença clandestina dos mais novos. Pelo menos, tinha um modo mais simpático
de nos enxotar, se compararmos com outros bem mais sisudos ou com um certo ar
adoutorado.
Naquela quarta-feira de fins
de Maio, a taberna estava atravancada de gente, tudo com os olhos postos no
ecrã. A floresta cerrada de corpos impedia quem estava ao balcão de conseguir
detectar os pequenos intrusos que se alinhavam debaixo das mesas.
O ambiente estava ao rubro. O
público simpatizante do futebol, em particular a falange benfiquista, vibrava
perante o êxito da equipa das águias que, ao intervalo, já vencia por 2-1.
Por cima do tampo da mesa que
nos camuflava, ouvíamos os adultos pronunciarem, além dos nomes dos jogadores
portugueses, outros bem mais estranhos como Kubala, Kocsis, Czibor, que
pareciam ser alguns dos maiores perigos da equipa adversária.
Comentava-se também o estado
físico de Mário Coluna, que teve que ser retirado do campo, meio atordoado,
após um violento choque com um jogador do Barça. Para grande alívio dos
benfiquistas, o motor da equipa da Luz voltaria a entrar em campo, já
recomposto, com a força e a capacidade de liderança que o caracterizavam.
Mal soou o apito final, foi a
loucura. O placard assinalava 3-2 a favor dos encarnados. O Benfica era, pela
primeira vez, Campeão Europeu. Houve aplausos, saltos, gritaria, uma verdadeira
explosão de júbilo.
Entretanto, na capital Suíça,
seguiram-se as habituais cerimónias da entrega da Taça e das medalhas aos
jogadores. Foi com lágrimas que os portugueses ali presentes ouviram o Hino
Nacional. Também por cá houve quem lacrimejasse de alegria. Em Montemor, e por
esse país fora, do Minho ao Algarve, houve manifestações de regozijo, só
comparáveis às conquistas dos Campeonatos do Mundo e da Europa pela Selecção
Nacional de Hóquei em Patins.
Como já tivemos oportunidade
de referir, vivemos todas estas emoções na Casa Frango, que, durante anos, foi
uma referência gastronómica em Montemor e não só.
Acrescente-que Fernando
Medronheira era um fervoroso adepto do “Glorioso”, correndo atrás da equipa
para todo o lado, juntamente com outros benfiquistas de gema.
Quanto ao negócio,
anteriormente pertença de Joaquim do Cantinho, passou para as mãos do amigo
Medronheira e de um irmão, que se fizeram acompanhar de sua mãe e excelente
cozinheira, conhecida por Maria Pintainha. Daí a designação Casa Frango. A
título de curiosidade, a família viveu no Monte das Alpistas, ali para os lados
do Picatojo. A taberna e casa de comidas eram muito frequentadas, sobretudo
numa época em que toda aquela zona da vila fervilhava de gente. Alem dos
fregueses locais, vinham ali viajantes e clientela de toda a parte. À quinta-feira,
por exemplo, deslocavam-se propositadamente, à Rua do Poço do Passo, uma equipa
de bancários de Évora para se deliciar com o cozido à portuguesa. Havia que
preferisse a gostosíssima mão de vaca com grão ou não menos saborosa dobrada
com feijão, entre outros pratos da nossa cozinha regional.
Mudam-se os tempos…mudam-se
as vontades! Hoje quem ali vai encontra um restaurante chinês, e as escolhas
passam por um arroz chao-chao, uns crepes, um chop-suey ou utra comida
oriental.
Estivemos há dias a conversar
com Maria Primitiva Baptista, viúva de Fernando Medronheira. Durante vários
anos, também ela participou na orientação da famosa casa de comidas e foi ela
que nos ajudou a reavivar a memória daquele velho espaço, além de nos fornecer
outros dados preciosos. Falamos, por exemplo, das cozinheiras que ali
trabalharam e de empregados como o José Francisco Medronheira Pontinha (José
Picatojo) ou do Luís Manuel.
Quem entrava, tinha a
taberna, á direita, que fazia ligação ao restaurante por uma porta baixa e
estreita. Lá no fundo, existia a cozinha e também “a casa dos touros”, com as
paredes cobertas por grandes e coloridos cartazes de corridas. Era ali que boa
parte da aficion de Montemor se reunia.
Um dos momentos mais felizes
vividos na Casa Frango aconteceu quando a Sorte Grande bateu à porta.
A taberna
apinhou-se de gente para ver os representantes da Casa da Sorte entregarem o
valioso prémio. Apesar disso, o trabalho não parou e o negócio continuou a
prosperar. Só muitos anos mais tarde, já na década de 70 é que Fernando
Medronheira trespassou o negócio.
Muito do que atrás ficou dito
foi-nos reforçado por António Ezequiel Ferreira, vulgarmente conhecido por o
Tói dos táxis. Também ele trabalhou na velha taberna e casa de comidas, ainda
no tempo de Joaquim do Cantinho. A conversa pareceu-nos demasiado interessante
para ser condensada nas poucas linhas que nos restam. Divulgá-la-emos numa
próxima oportunidade.
Diremos apenas, para
terminar, que foi marcante aquele ano de 1961, em que o Benfica se sagrou, pela
primeira vez, Campeão Europeu. As conversas que os adultos faziam à nossa volta
referiam-se à tomada de assalto do paquete Santa Maria pelo capitão Henrique
Galvão. Falava-se também do agravar da situação dos territórios ultramarinos,
especialmente em Angola. Salazar afirmava que só restava a solução militar e
que era preciso andar rapidamente e em força. Entretanto, lá por fora, Kennedy,
Adenaur e De Gaulle discutiam a questão de Berlim, admitindo que esta voltasse
a ser um dia a capital de uma Alemanha reunificada. Os soviéticos colocavam em
órbita um satélite com várias toneladas, e , de Estocolmo, chegava a boa
notícia de um coração a funcionar com baterias. Assim ia Portuga e o mundo.
Até um dia destes.
Vitor Guita
In Montemorense, edição de Junho 2015. Transcrição
autorizada pelo Autor para o Al Tejo
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