Há um discurso no ar que atravessa quase todas as actividades, reuniões,
apresentações, foruns, propostas de protocolos.
Um discurso composto de palavras que
têm a pretensão da universalidade, da neutralidade e da frieza da
tecnocracia.
Passamos o tempo a ouvir falar em “hub’s”, “players”, “stackholders”,
“core business” e outros termos em discursos produzidos supostamente em
potuguês.
É uma espécie de cassete reproduzida por uma nova geração de velhos
tecnocratas que pretendem demonstrar a neutralidade de uma linguagem
supostamente técnica.
Em português, a substituição de palavras que todos entendemos e às quais
damos conotações muito precisas e negativas tem feito exactamente o mesmo
caminho.
Poderia aqui dar inúmeros exemplos de como através da mudança da
llinguagem se reproduz a ideia de um mundo mais leve, limpo e supostamente
ideologicamente neutro, mas vou apenas referir um que me deixou espantado.
Decorria o forum social promovido pela Câmara de Évora, quando foi feita
uma apresentação de um estudo académico sobre as pessoas em situação de
“insegurança alimentar”.
Pensarão provavelmente que se tratou de alguma análise sobre o prazo de
validade de alimentos ou outros riscos associados. Nada disso. Falava-se de
pessoas que se encontravam em situação de não conseguirem garantir a
alimentação suficiente para si e para as suas famílias.
Poderiamos dizer que se falou de dados estatísticos sobre os que não têm
meios para suprir as necessidades alimentares e estaríamos a reflectir o que
se passou, mas ainda assim estaríamos a utilizar uma linguagem distante e sem
qualquer carga emocional. Ou poderiamos usar um termo que todos compreendemos
e, sendo apenas uma palavra, contém lá dentro um mundo inteiro negro e
pesado.
De facto falou-se de fome. Como devem imaginar é diferente dizer-se que
um determinado grupo está em “situação de insegurança alimentar severa” do
que dizer-se que os indivíduos que compõem esse mesmo grupo passam fome.
Quando se fala em “situação de insegurança alimentar severa” a coisa
parece menos grave, mais limpinha, cria a distância necessária para que as
emoções fiquem de fora, em particular a raiva, a indignação, a vontade de
destruir o mundo que atira para a fome milhões de pessoas, para que alguns
não percam os seus privilégios.
Esta sociedade já tinha deixxado de poduzir pobres para passar a produzir
“carenciados”, já tinha deixado de produzir “sem abrigo” para passar a
produzir “cidadãos com necessidades quantitativas de habitação”, agora parece
que os que passam fome são cidadãos em “situação de insegurança alimentar
severa” e os que têm de recorrer à rede familiar para poderem ter uma
refeição são cidadãos em “situação de insegurança alimentar moderada”.
É apenas uma questão de terminologia dirão alguns ingénuos. Não, não é. É
a linguagem a produzir ideologia, a obrigar-nos a usar as suas válvulas de
escape.
Mas bem podem dizer que a “economia de
mercado” atira para a “situação de insegurança alimentar severa” os
“colaboradores” colocados em situação de procura de “novas oportunidades de
desenvolvimento profissional”, que haverá sempre quem use as palavras certas
para dizer que o sistema capitalista, pela sua natureza, atira para a fome os
trabalhadores que pagam as suas crises estruturais.
Até para a semana
Eduardo Luciano
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