MEMÓRIAS CURTAS – Mês de
Julho
As memórias deste mês vão
ser lambuzadas de mel, á mistura com pinhões torrados. Dito noutros termos,
vamos falar, a determinado passo, de pinhoadas.
Antes, porem, permita o
estimado leitor que lhe diga que, lá em casa, o mês de Julho era tempo de
pensar em férias. Ouvíamos constantemente os mais velhos a delinear planos e a
fazer contas de cabeça, sem que ninguém os acusasse de viverem acima das suas
possibilidades. Também, verdade seja dita, talhava-se o pano à medida da obra
e, há sessenta anos não havia publicidade a fazer apelos do tipo “Vá de férias
primeiro, pague depois” e outras perigosas seduções do mesmo género.
Por causa da praia, as
alternativas passavam habitualmente por alugar um quarto na baixa de Setúbal,
desfrutar uma quinzena na pacata baía de Sines ou conseguir um turno de vinte
dias na colónia de férias da FNAT, na Costa da Caparica. Em anos de orçamento
mais apertado, ia-se até ao campo, aqui nas redondezas, fazia-se uma viagem
relâmpago mais a Norte ou visitavam-se familiares residentes na Damaia ou às
Portas de Benfica. Estava-se a um passo do Jardim Zoológico e relativamente
perto da romântica Sintra das queijadas, da Praia das Maçãs e da Ericeira.
Viajávamos, quase sempre,
de autocarro. A saída de casa para a estação da Setubalense era feita
atempadamente, cerca de uma hora antes da partida, ainda assim não fosse o
pessoal ficar em terra.
Não chegavam as mãos dos
quatro lá de casa para tanta mala, saquinhos e saquetas. Em último recurso,
chamava-se o Florival ou outro moço de fretes para transportar a complexa
pirâmide de bagagem em cima de um estreito carrinho de mão. Depois era esperar
(im) pacientemente pelo anúncio do Chefe Botas, para ficarmos a saber qual era
o nosso autocarro, o respetivo destino, e ouvir o apito da partida: “Senhores passageiros para Vendas Novas,
Pegões, Águas de Moura, Setúbal, Azeitão, etc., etc., etc.”.
As imagens visuais e
sonoras que melhor guardamos na lembrança, referem-se à estação da avenida,
construída na década de 50. Da primeira estação, junto ao chafariz da Rua Nova,
restam-nos apenas impressões difusas, nada que uma boa fotografia não ajude a
reavivar.
Já agora, por mera
coincidência, faz este mês 40 anos que faleceu Joaquim CAETANO botas. Elementos
da família Belo estiveram presentes no funeral.
A nova gare da Setubalense,
actual Rodoviária Nacional, tinha sido inaugurada não havia muito tempo.
Mas, voltemos às viagens
de férias. Enquanto chegava ou não chegava a carreira, os nossos olhos curiosos
não paravam, até conseguirmos perceber qual era a camioneta que nos calhava na
rifa. Se uma daquelas lisas à frente, já mais modernaças, ou uma das mais
antigas, de tromba avançada, como alguns “delicadamente” lhes chamavam.
Estávamos sempre a torcer para que fosse uma das primeiras.
O carrego das bagagens
constituía penosa tarefa para cobradores e outros funcionários da estação. As
malas e os sacos maiores tinham de ser arrumados em cima do autocarro, envoltos
em redes, ainda assim não fosse algum tareco voar pelo caminho. Por vezes
sentiamo-nos envergonhados com tanta traquitana que a família levava de férias
e que os trabalhadores da empresa tinham de içar, esforçadamente, para cima do
tejadilho.
Nas imediações da gare,
viam-se vendedores de pevides, amendoins, chupa-chupas, rebuçados, bolos secos
e outras guloseimas. Alguns deles tornaram-se figuras populares. Dentro e fora
da camioneta, aparecia também gente a vender bananas ultra maduras, de cheiro e
sabor intenso, e rapaziada da terra, com caixas envidraçadas ao pescoço,
apregoando pinhoadas.
Convidamo-lo agora, amigo
leitor, a viajar até aos bastidores deste doce tradicional. Os losangos de mel
e pinhão, aparentemente simples, escondiam o longo trabalho que implicava o seu
fabrico.
Era ali na Rua das Pinas,
na casa de Maria Luísa Marques (A Maria Luísa das Pinhoadas), que se
confecionavam aquelas delícias artesanais. Nós vivíamos ali por perto, na Rua
de Pedrão. O toque da alvorada soava alta madrugada, no nº 2 da íngreme ruela.
Às quatro horas, ainda noite escura, já Maria Luísa, o marido e a filha Nita
andavam de levante. A mestra das pinhoadas contava com a preciosa ajuda da
família. Era labuta a mais para uma pessoa só. As primeiras tarefas passavam
por abrir as pinhas, partir pinhões e torrá-los, acender o lume no fogareiro de
ferro, onde assentava a pesada panela de ferver o mel. António Fragoso, segundo
consta, tinha um dedo famoso para achar o ponto. Fervido o mel, juntava-se o
pinhão torrado e espalhava-se a pasta caramelizada sobre uma extensa tábua. Ali
seriam cortados, á régua, os dulcíssimos losangos.
Entre outras funções a
filha Nita encarregava-se de cortar, geometricamente, o papel vegetal em
pedaços e colá-lo de um lado e de outro das pinhoadas. Não havia tempo a
perder. Em breve, chegaria uma equipa de rapazes para vender, ruas fora, a
produção diária.
Alem disso, acabada a estrafega das pinhoadas, António Fragoso
(Gaudencio para os amigos) tinha de entrar de serviço na Ceres, a grande moagem
da vila.
No que toca a vendas,
havia quem comprasse um ou mais pacotes inteiros. A maioria, com uns magros
tostões no bolso, contentava-se com uma unidade e já gozava.
O sabor das pinhoadas da
Maria Luísa era divinal. O mel colava-se aos dentes. Para os mais atrapalhados,
o contratempo estava em conseguirem desfazer-se dos pegajosos losangos de
papel, que se agarravam às mãos, á cara, aos pés, um pouco por todo o lado.
O custo da matéria-prima
e, acima de tudo, problemas de saúde levaram Maria Luísa a abandonar a
atividade. Outras mulheres meteram ombros á empreitada. Foi o caso, por exemplo
de Mariana Marrafa.
Deixamo-lo, estimado
leitor, com um dos pregões que, á distância de muitos anos, ainda ecoa nos
ouvidos de alguns Montemorenses.”
Pinhoadas, ó lindas e boas! Ó fregueses, ó patroas,…venham comprar…Pinhoadas
booooas!”
Até à próxima.
Vitor Guita
Publicado no jornal “o
Montemorense” Julho 2014. Transcrito com a devida autorização do Autor
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