quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

COLABORAÇÃO DR ALEXANDRE LABOREIRO

                                               Os Livros e a Sociedade

«Que maravilhosa criação do trabalho humano é um livro?!... – a obra do poeta, ou a narração do historiador, ou o pensamento do filósofo  -  antes, refiro-me ao objecto concreto, que seguramos na mão e a que chamamos, precisamente, “o livro” »

Romano Guardini
(in “Elogio do Livro”)

A respeito do valor dos livros, escreveu Catarina Portas: «Quem foi bafejado pela sorte de aprender a gostar de ler, sabe do que falo. Descobrir o que é mergulhar de apneia convulsivamente nas páginas de um livro quando se cresce é a mais importante das lições. Em romances que são outros mundos, um universo novo, totalmente diferente, infinitamente desconhecido... O nosso mundo é quase sempre redutor. Precisamos de outros mundos redentores da nossa pequenez, ignorância, cobardia, comodismo. Nada nos é mais essencial do que medirmo-nos com o mundo dos outros. E isso é que o mergulho num livro inteiro e intenso nos pode dar». É que o livro conduz-nos a uma referência às sociedades, aos mundos dos Homens  -  com os seus valores e fraquezas, com heroicidades e cobardias, com a sua sabedoria e ignorância, com os seus amores e desprendimentos, com os seus méritos e banalidades  -  em suma, a uma dialéctica sociocultural, cuja conclusão nos pertencerá a nós fazer ao apreciarmos o livro.
«A literatura é a consciência da humanidade» - disse-nos Pau Souday. E, efectivamente, o livro “espelha” as Sociedades: foi assim com o Realismo («É a proscrição do convencional, do enfático e do piegas... é a análise com o fim da verdade absoluta... afirma-se pela anatomia do carácter, contra a apoteose do sentimento»  -  diria Eça para definir o novo estilo literário); seria assim também com o Neo-realismo («só as forças ascendentes amam a realidade e a verdade, exactamente porque são de conquista; os que defendem um equilíbrio estabelecido, temendo as consequências do conhecimento, refugiam-se nas mentiras nefelibatas ou no intelectualismo puro e estéril»  -  defenderia Joaquim Namorado). Porém, uma sociologia da literatura (analisando grupos humanos, discursos, comportamentos, costumes, ideias, culturas, estilos de escrita, etc.) mostrar-nos-á que o livro autêntico lê-nos a nós. E mais imperioso se torna atendermos ao mundo actual, caracterizado pela “cultura de massas”: a este respeito, diz-nos José Palla e Carmo (in “Do Livro à Leitura”): «A zona de comunicação entre o sujeito da cultura de massas e os produtos desta estabelece-se, de facto, na mútua comunicação do imaginário e do real, o primeiro através de um processo de projecção (para o mundo do sobre-humano, do extraordinário, etc.), o segundo mediante uma identificação (no mundo do corrente, do familiar, do quotidiano). Ambos são, evidentemente, processos de abstracção. Na abundantíssima produção livresca de grande e efémero consumo -  à semelhança do que ocorre no cinema, na televisão, na rádio, na grande imprensa  -  avultam, efectivamente, as biografias romanceadas, as obras históricas contadas como se as histórias de amor centralmente fossem; e, inversamente, as obras de ficção solidamente documentadas em factos concretos da vida real ou documentando-os. Sintomático de que este sincretismo é comum a toda a cultura de massa é o facto de os temas de muitas obras circularem indiferentemente da grande imprensa para a televisão, desta para o romance, do romance para o cinema, do teatro para o cinema ou televisão, etc.» -  constatação pertinente do intuito predominantemente mercantilista que atravessa a Literatura (e toda a Cultura) dos nossos tempos, “atravessados” por uma “cultura de massas” (que “pensa” mais com a emoção, que com a razão); ou seja, num propósito mais próximo de considerar o livro como mercadoria, do que o de “aculturar” uma sociedade.
E não há dúvida que a leitura continua a ser um dos motivos mais preferidos pela gente moça, diz-nos Mário Sacramento, que acrescenta  achar estranho, face ao facto de outras solicitações mais variadas e cheias de interesse existirem para ocupar e distrair os jovens: constatando-se que, efectivamente, a leitura foi  -  num inquérito realizado  -  a ocupação manifestada preferidamente pelos jovens, imediatamente a seguir ao cinema; apetência, pelo livro e a leitura, considerada pertinente, se atendermos a que a leitura gera aquisição de conhecimentos, desenvolve a capacidade de pensar, de relacionar os conhecimentos, apura as formas de sensibilidade, para além de estimular a capacidade do querer, da vontade, catalisando a capacidade de passar do pensamento à acção (atributo tão importante numa época, e num mundo, de porvir tão indefinido).
Como diz Roger Chartier, considerar que qualquer obra se encontra ancorada nos métodos e nas construções do mundo social não significa que se defende uma igualdade geral entre todas as produções do espírito. Algumas melhores que outras, não esgotam nunca a sua força de significado; porém, o livro é uma expressão do espírito que nos continua a “arrumar a nossa cabeça”, a disciplinar a orgânica do nosso espírito, a enriquecer a nossa mente, a solidificar as nossas ideias, a aclarar as nossas opiniões. É que, como opinou um filósofo, «as ideias são como os pregos, é preciso bater-lhes muitas vezes na cabeça, para que eles penetrem». E a nossa Cultura, passa pela nossa construção (e desconstrução) e reconstrução de ideias -  na nossa dialéctica de um “conhecimento gerante”  -  em que cada conhecimento vem, ao longo da nossa vida, entrosar nos nossos conhecimentos existentes (fruto da complexidade perfeita da formação do espírito humano).
Pascal dir-nos-ia que «vale mais uma cabeça bem feita, que uma cabeça bem recheada» -  na intenção da defesa de uma aculturação enriquecida, porque perfeitamente construída. E esta formação do espírito, passa  -  em grande parte  -  pelo livro e a leitura. Na parede de uma biblioteca norte-americana, está inscrita a seguinte constatação: «As bibliotecas ajudar-te-ão mais numa época sem dinheiro, do que o dinheiro te ajudará numa época sem bibliotecas». E, certamente, assim julgará quem se sentirá feliz, ao ritualmente retirar um livro de uma estante, o afagar cuidadosamente, sentir o ritual de o paginar, fruir religiosamente o seu conteúdo, sentir felicidade em “dialogar” com o que lê, encerrar meticulosamente o livro que consultou, e usar da mesma ritualidade ao devolvê-lo à estante: opinião de Roger Chartier.
Manuel António Pina, num poema intitulado “Os livros”, escreveu-nos: «É então isto um livro,  //  este, como dizer?, murmúrio,  //  este rosto virado para dentro de  //  alguma coisa escura que ainda não existe  //  que, se uma mão subitamente  //  inocente o toca,  //  se abre desamparadamente  //  como uma boca  //  falando com a nossa voz?  //  É isto um livro,  //  uma espécie de coração (o nosso coração)  //  dizendo “eu” entre nós e nós ? »
É, realmente, isto o livro: algo pleno de expectativas e incógnitas, que se nos abre espontaneamente e com familiaridade se torna nosso amigo ao consolar-nos nas agruras, e partilhar connosco as felicidades. Afinal, como o “slogan” publicitário de uma livraria dele nos diz: «O nosso maior amigo, porque nos oferece um tesouro, e não nos pede nada em troca».

José Alexandre Laboreiro


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