Os Livros e
a Sociedade
«Que maravilhosa criação do
trabalho humano é um livro?!... – a obra do poeta, ou a narração do
historiador, ou o pensamento do filósofo
- antes, refiro-me ao objecto
concreto, que seguramos na mão e a que chamamos, precisamente, “o livro” »
Romano
Guardini
(in “Elogio do Livro”)
A respeito do
valor dos livros, escreveu Catarina Portas: «Quem foi bafejado pela sorte de
aprender a gostar de ler, sabe do que falo. Descobrir o que é mergulhar de
apneia convulsivamente nas páginas de um livro quando se cresce é a mais
importante das lições. Em romances que são outros mundos, um universo novo,
totalmente diferente, infinitamente desconhecido... O nosso mundo é quase
sempre redutor. Precisamos de outros mundos redentores da nossa pequenez,
ignorância, cobardia, comodismo. Nada nos é mais essencial do que medirmo-nos
com o mundo dos outros. E isso é que o mergulho num livro inteiro e intenso nos
pode dar». É que o livro conduz-nos a uma referência às sociedades, aos mundos
dos Homens - com os seus valores e fraquezas, com
heroicidades e cobardias, com a sua sabedoria e ignorância, com os seus amores
e desprendimentos, com os seus méritos e banalidades - em
suma, a uma dialéctica sociocultural, cuja conclusão nos pertencerá a nós fazer
ao apreciarmos o livro.
«A literatura
é a consciência da humanidade» - disse-nos Pau Souday. E, efectivamente, o
livro “espelha” as Sociedades: foi assim com o Realismo («É a proscrição do
convencional, do enfático e do piegas... é a análise com o fim da verdade
absoluta... afirma-se pela anatomia do carácter, contra a apoteose do
sentimento» - diria Eça para definir o novo estilo
literário); seria assim também com o Neo-realismo («só as forças ascendentes
amam a realidade e a verdade, exactamente porque são de conquista; os que
defendem um equilíbrio estabelecido, temendo as consequências do conhecimento,
refugiam-se nas mentiras nefelibatas ou no intelectualismo puro e estéril» -
defenderia Joaquim Namorado). Porém, uma sociologia da literatura (analisando
grupos humanos, discursos, comportamentos, costumes, ideias, culturas, estilos
de escrita, etc.) mostrar-nos-á que o livro autêntico lê-nos a nós. E mais
imperioso se torna atendermos ao mundo actual, caracterizado pela “cultura de
massas”: a este respeito, diz-nos José Palla e Carmo (in “Do Livro à Leitura”): «A zona de comunicação entre o sujeito da
cultura de massas e os produtos desta estabelece-se, de facto, na mútua
comunicação do imaginário e do real, o primeiro através de um processo de projecção
(para o mundo do sobre-humano, do extraordinário, etc.), o segundo mediante uma
identificação (no mundo do corrente, do familiar, do quotidiano). Ambos são,
evidentemente, processos de abstracção. Na abundantíssima produção livresca de
grande e efémero consumo - à semelhança
do que ocorre no cinema, na televisão, na rádio, na grande imprensa -
avultam, efectivamente, as biografias romanceadas, as obras históricas
contadas como se as histórias de amor centralmente fossem; e, inversamente, as
obras de ficção solidamente documentadas em factos concretos da vida real ou
documentando-os. Sintomático de que este sincretismo é comum a toda a cultura
de massa é o facto de os temas de muitas obras circularem indiferentemente da
grande imprensa para a televisão, desta para o romance, do romance para o
cinema, do teatro para o cinema ou televisão, etc.» - constatação pertinente do intuito
predominantemente mercantilista que atravessa a Literatura (e toda a Cultura)
dos nossos tempos, “atravessados” por uma “cultura de massas” (que “pensa” mais
com a emoção, que com a razão); ou seja, num propósito mais próximo de
considerar o livro como mercadoria, do que o de “aculturar” uma sociedade.
E não há
dúvida que a leitura continua a ser um dos motivos mais preferidos pela gente
moça, diz-nos Mário Sacramento, que acrescenta
achar estranho, face ao facto de outras solicitações mais variadas e
cheias de interesse existirem para ocupar e distrair os jovens: constatando-se
que, efectivamente, a leitura foi - num inquérito realizado - a
ocupação manifestada preferidamente pelos jovens, imediatamente a seguir ao
cinema; apetência, pelo livro e a leitura, considerada pertinente, se
atendermos a que a leitura gera aquisição de conhecimentos, desenvolve a
capacidade de pensar, de relacionar os conhecimentos, apura as formas de
sensibilidade, para além de estimular a capacidade do querer, da vontade,
catalisando a capacidade de passar do pensamento à acção (atributo tão
importante numa época, e num mundo, de porvir tão indefinido).
Como diz Roger Chartier,
considerar que qualquer obra se encontra ancorada nos métodos e nas construções
do mundo social não significa que se defende uma igualdade geral entre todas as
produções do espírito. Algumas melhores que outras, não esgotam nunca a sua
força de significado; porém, o livro é uma expressão do espírito que nos
continua a “arrumar a nossa cabeça”, a disciplinar a orgânica do nosso
espírito, a enriquecer a nossa mente, a solidificar as nossas ideias, a aclarar
as nossas opiniões. É que, como opinou um filósofo, «as ideias são como os
pregos, é preciso bater-lhes muitas vezes na cabeça, para que eles penetrem». E
a nossa Cultura, passa pela nossa construção (e desconstrução) e reconstrução
de ideias - na nossa dialéctica de um
“conhecimento gerante” - em que cada conhecimento vem, ao longo da
nossa vida, entrosar nos nossos conhecimentos existentes (fruto da complexidade
perfeita da formação do espírito humano).
Pascal
dir-nos-ia que «vale mais uma cabeça bem feita, que uma cabeça bem recheada»
- na intenção da defesa de uma
aculturação enriquecida, porque perfeitamente construída. E esta formação do
espírito, passa - em grande parte - pelo
livro e a leitura. Na parede de uma biblioteca norte-americana, está inscrita a
seguinte constatação: «As bibliotecas ajudar-te-ão mais numa época sem
dinheiro, do que o dinheiro te ajudará numa época sem bibliotecas». E,
certamente, assim julgará quem se sentirá feliz, ao ritualmente retirar um
livro de uma estante, o afagar cuidadosamente, sentir o ritual de o paginar,
fruir religiosamente o seu conteúdo, sentir felicidade em “dialogar” com o que
lê, encerrar meticulosamente o livro que consultou, e usar da mesma ritualidade
ao devolvê-lo à estante: opinião de Roger Chartier.
Manuel António
Pina, num poema intitulado “Os livros”, escreveu-nos: «É então isto um
livro, // este, como dizer?, murmúrio, //
este rosto virado para dentro de
// alguma coisa escura que ainda
não existe // que, se uma mão subitamente //
inocente o toca, // se abre desamparadamente //
como uma boca // falando com a nossa voz? // É
isto um livro, // uma espécie de coração (o nosso coração) //
dizendo “eu” entre nós e nós ? »
É, realmente,
isto o livro: algo pleno de expectativas e incógnitas, que se nos abre
espontaneamente e com familiaridade se torna nosso amigo ao consolar-nos nas
agruras, e partilhar connosco as felicidades. Afinal, como o “slogan”
publicitário de uma livraria dele nos diz: «O nosso maior amigo, porque nos
oferece um tesouro, e não nos pede nada em troca».
José Alexandre
Laboreiro
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