quarta-feira, 8 de agosto de 2012

MEMÓRIAS CURTAS (Rubrica mensal do Prof Vitor Guita)


Olha as ceifeiras
Tão engraçadas,
Lenços de chita,
Saias rodadas.

Saias rodadas,
Chapéus ao lado.
Ora aqui está
Um rancho engraçado.

                A simplicidade e o pitoresco destes versos não param de ressoar nos nossos ouvidos. São ecos, talvez, das Memórias de Junho, que nos fizeram viajar pelo universo da “aceifa”. Ou será a nossa costela folclorística a querer manifestar-se?
                A passagem, ainda que breve, pelo Rancho dos Fazendeiros constituiu uma das experiências marcantes da nossa juventude.
                Estávamos no Verão de 1967, nas vésperas de um Festival de Folclore a realizar no Pavilhão dos Desportos, em Lisboa. O então director e ensaiador do Rancho, Feliciano Rabaça do Carmo, desafiou-nos para cantar uma desgarrada em pleno ringue do Pavilhão, ao lado de uma das belíssimas cantadeiras do grupo. Por razões de força maior, o cantador habitual estava impossibilitado de acompanhar os Fazendeiros nessa actuação.

                Estivemos, há dias, com o António José Cinco-Réis a rememorar letras e músicas que tiveram assinalável êxito junto do público amante do folclore e não só. A Cantiga do Cegonho, musicada por Nicolau Catita, arrancava sistematicamente longos e efusivos aplausos da assistência, obrigando a frequentes repetições. O António José destacou ainda as inúmeras actuações no Solar da Hermínia, em Benavente, onde o Rancho de Montemor gozava de grande estima e admiração.
                Consta que, certo dia, foi pedido ao grupo que dançasse um fandango. A tarefa era ingrata, já se vê, em terra de fandangueiros. A surpresa aconteceu quando os irmãos Carvoeiro e dois dos elementos femininos, a Idalina Craveira e a Angelina Carvoeiro, saltaram para o meio da sala e mostraram como se bate o pé à moda do Alentejo.
                Esta dança popular passou a fazer parte do reportório e a ser um dos momentos altos das exibições dos Fazendeiros. Os irmãos Luís e Joaquim Carvoeiro fizeram furor por essas terras fora, exibindo a elegância dos passos e o virtuosismo do sapateado, sem bulir o tronco, como mandam as regras.
                Ainda nesse ano de 1967, se a memória não nos atraiçoa, participámos na gravação de um dos discos dos Fazendeiros, que se realizou no ginásio do Externato Mestre de Avis. Memórias que ficam!
                Como o amigo leitor poderá imaginar, é impossível, em tão curto espaço, fazer aqui o longo e detalhado historial deste agrupamento folclórico. São mais de 50 anos a dançar, a cantar, a transportar condignamente o nome de Montemor. Aliás, a nova geração dos Fazendeiros continua activa, exibindo a riqueza do folclore da nossa região.

                Vamos, pois, ter de nos concentrar nas origens do grupo, nos primeiros anos da sua existência.
                Tivemos a sorte de encontrar a Idalina Craveira, o nosso par da desgarrada. Encontrámo-la a ela e ao marido, o Teodósio Panelas, que veio, mais tarde, a integrar o agrupamento. A Idalina da Pontinha, como é conhecida, mantém a mesma alegria contagiante, a mesma vivacidade, o mesmo prazer de comunicar de outros tempos.
                Conversa puxa conversa, as palavras fizeram-nos rodopiar até ao ano de 1958, data da fundação do Rancho. Nessa altura, a Idalina ia a caminho dos 14 anos.
                Criado por iniciativa de Feliciano Rabaça do Carmo, o grupo nasceu nos arredores da vila, na zona das Fazendas, donde lhe veio o nome. Um outro montemorense, José Antas, exímio no acordeão, foi também elemento preponderante na idealização e na organização do agrupamento folclórico.
                Os primeiros ensaios e reuniões tiveram lugar no Monte dos Henriques, numa sala de bailes bastante concorrida. Ali funcionou a primeira “sede” do recém-nascido grupo.
                O território das Fazendas, apesar da dispersão da propriedade e das suas gentes, concentrava um manancial riquíssimo de tradições. Em dias como a 4ª feira de Cinzas, juntava-se o pessoal do Pé Bom, da Ribeira, do Sabugueiro, dos Mortórios e de outros montes à volta. Os de mais idade cantavam e dançavam modas antigas à luz do candeeiro a petróleo ou do petromax. Os mais novos miravam-nos com curiosidade e bebiam-lhes avidamente as palavras, as melodias, os movimentos. Foi assim que a Idalina e outros jovens fazendeiros aprenderam o Polqueado, os Dois Pulinhos, os Três Tempos e mais umas quantas danças tradicionais.
                A Idalina da Pontinha, visivelmente orgulhosa, fez alusão aos seus antepassados. Falou-nos da avó Gertrudes Cantanhede (a Gertrudes do Foro), de quem ouviu, pela primeira vez, a palavra mazurca. Era mulher instruída, que ensinou as primeiras letras a muito boa gente. O pai, Filipe da Pontinha, gostava de improvisar versos, e o avô, Custódio dos Santos, tinha especial apetência pela guitarra. Quanto à mãe, a Ermelinda do Foro, levantava-se a cantar e deitava-se a cantar. As pessoas paravam à volta do monte, deliciadas, só para lhe ouvir a voz.
                Pois é! Quem sai aos seus… A Idalina herdou os dotes de sua mãe. Além disso, era uma comunicadora nata. Pequena na estatura, agigantava-se em palco. Ainda houve tentações para ou-tros voos. A Ermelinda do Foro é que não achava graça. Atrás disso podiam vir outras coisas. Algumas vozes não paravam de a atormentar: Guarda-a bem, Ermelinda! Guarda bem a tua filha!
                A conversa com estes nossos interlocutores prolongou-se durante mais algum tempo. Decidimos, entretanto, dar mais uns passos e fomos ao encontro de Umbelina Cinzas, um outro rosto que associamos às origens dos Fazendeiros. A Umbelina relatou-nos o que foi a euforia dos primeiros anos. O entusiasmo era tal, que alguns curiosos chegaram a destelhar a cobertura do Monte dos Henriques para espreitarem os ensaios. Lá em baixo, na sala, Feliciano Rabaça escutava a família Carvoeiro, os familiares da Idalina, os irmãos Matateu e outros fazendeiros. Pedia-lhes que fizessem demonstrações das danças e cantares tradicionais. Ele próprio experimentava os movimentos e efectuava os seus registos. Para captar os sons, estava lá o José Antas e, caso necessário, socorria-se dos conhecimentos musicais do amigo Nicolau Catita.
                À procura de outro espaço de trabalho, o Rancho passou a ensaiar no salão da Pedrista, onde fez, aliás, a sua primeira apresentação. Mais ensaios aconteceram na Fazenda do Maçarico e, lá em baixo, na Travessa da Cruz da Conceição, na antiga oficina de ferrador do mestre Fernando do Carmo, pai do ensaiador.
                Depois de mais umas quantas voltas, decidimos contactar algumas das pessoas que privaram mais de perto com o fundador do Rancho. Adelaide Rabaça, que esteve sempre por detrás a ajudar,  guarda uma quantidade apreciável de documentação, fundamental para se fazer a história dos Fazendeiros: fotografias, programas, anotações do ensaiador, versos manuscritos em folhas avulsas de papel. O amigo Feliciano gostava de versejar e de se aventurar na escrita teatral. São dele alguns originais como O Milagre na Aldeia e Há Festa na Nossa Terra. Os preciosos documentos permitem--nos recordar, por exemplo, as várias presenças do Rancho na televisão. A primeira actuação aconteceu no dia 1 de Outubro de 1961, nos estúdios do Lumiar, num cenário improvisado com fardos de palha, forrados de pano preto. Pouco depois, o grupo gravava o seu primeiro disco.
                A ida dos Fazendeiros à RTP despertou sentimentos de orgulho e de intensa alegria na população de Montemor. No Largo do Almansor, foi instalado um aparelho para que os montemorenses pudessem desfrutar de tão extraordinário momento televisivo.
                Não têm conto os momentos gloriosos do Rancho, nomeadamente, as actuações na Feira das Indústrias, no Solar Pôr-do-Sol, em Benavente, e tantas mais. Ficou memorável a exibição na concha do Palácio de Cristal, no Porto. Chegou a haver invasão de palco por parte do público nortenho. Uma verdadeira apoteose!
                Os Fazendeiros conquistaram um lugar de prestígio no panorama folclórico nacional. A riqueza das danças e cantares, o rigor nas apresentações, a qualidade artística dos seus elementos,  a alegria e o prazer  que o grupo transmitia eram as chaves do sucesso.
                Não se pense, porém, que a caminhada foi fácil. Falando, há dias, com a nossa amiga Maria Virgínia, filha do fundador do Rancho, ela confirmou-nos aquilo que outros já nos tinham relatado. Num tempo em que não se co-nhecia a palavra “subsídio”, os primeiros trajes foram adquiridos ou confeccionados pelos próprios elementos do grupo. Sabe-se lá com que dificuldades?! O transporte era feito no Volkswagen da família Rabaça e em carros de outros particulares, sempre a abarrotar de gente.
                Bem vistas as coisas, isto de dançar, cantar, representar, nunca foi tarefa fácil. Apesar de tudo, há Festa! Há Festa na Nossa Terra!

                Boas Férias.
Vítor Guita

Nota de rodapé do Editor:
Ao transcrever esta crónica dois nomes me acudiram à mente: O Chico Badalinho e o Zico, dois  "amantes" do folclore, que, no Concelho do Alandroal alguma coisa fizeram em prol deste meio cultural tão do agrado de muitos.
Aproveito ainda para deixar uma imagem da recente homenagem prestada ao Autor da crónica, Prof  Vitor Guita.


3 comentários:

Anónimo disse...

fui dos poucos que acreditou que portugal trazia alguma medalha.
medalha de prata na prova de K2 1000 metros de canoagem

Anónimo disse...

Obs.

Professor,


Desafiando,desfiando e

descrevendo com a

maior das facilidades as suas

memórias dos feitos

Fazendeiros, até

chega a dar

impressão que relatar e

reinventar memórias

antigas, é a coisa mais fácil

do mundo.

Será mesmo?

Ou trata-se antes

de uma garantida arte sua de

fazer desaguar na narrativa a

vida das pessoas que foram

também fazendo coisas

culturais importantes e com

muita beleza.


Melhores saudações


AnB

Anónimo disse...

Quem é, na fotografia, o prof. Víctor Guita?
Raios.... conheço-lhe a prosa, conheço-lhe a apetência para falar dos seus tempos de adolescência, reconheço-lhe o mérito para nos fazer recuar no passado.... mas não lhe conheço a figura!

Alguém que o admira mesmo sem o conhecer pessoalmente.