(O Luís Fernando brinda-nos com mais um excelente conto)
O CUCO
Texto: Luis Galhardas
Ilustração: Paula Costa
Deliciava-me ouvir o cantar melódico e ritmado do Cuco, ecoando Primavera fora e Verão dentro, naqueles tempos em que fui menino.
Como se fosse hoje, oiço o “cu-cu”... distante entrando no meu pequeno mundo e atingindo o íntimo do meu ser em baforadas de calor e bem estar.
Sempre que os meus tímpanos eram estimulados, aí ficava bons bocados no limiar da hipnose, ouvindo a nota musical repetitiva.
O som penetrante entusiasmava-me para sonhos do belo mundo campestre que ia observando, com curiosidade e admiração, em passeatas familiares à vinha da Faia, à quinta de Santo António, ou à romaria dos Prazeres.
Tinha, assim, esta ave em grande consideração, embora nunca lhe tivesse posto a vista em cima, o que lhe emprestava uma capa de mistério.
Até ao dia em que descobri o seu carácter torpe e malfazejo, ali pelos primeiros tempos de escola.
Rapidamente me apercebi que o meu companheiro de carteira, o meu amigo Tricas, era especialista em ninhos e passarada.
Certo dia em que chegara atrasado à escola, motivo suficiente para ser aviado com umas bofetadas e um grande raspanete, em frente de toda a classe, confessou-me que tinha estado a observar um ninho de Cuco, com ovos quase a tirar passarinhos.
Fiquei perdido de entusiasmo e caí de borco na rasteira que o Tricas me passava.
As palavras saltaram-me da boca, emitidas com toque quase de exigência:
-Tricas amanhã quero ir contigo ver esse ninho! Sabes, tenho ouvido muitas vezes o cantar do Cuco, mas nunca vi nenhum.
O Tricas, matreiro, deitou-me um olhar condescendente de bom amigo e garantiu:
«Amanhã irás comigo até ao ninho do Cuco. Mas, prepara-te para teres uma surpresa porque é um ninho muito especial. E, já agora, traz umas nozes e umas passas de figo, pois o ar do campo abre-me o apetite» - sugeriu ao de leve, mas em pulgas por enfiar o dente em guloseimas raras nessa altura do ano.
Depois de uma noite agitada, em que várias vezes acordei em sobressalto distante do quarto onde dormia, o dia amanheceu sorridente e arejado, coincidindo com o meu estado de espírito irrequieto.
Uma escapadela, às escondidas, à dispensa da casa municiou-me dos frutos secos suficientes para encher o Tricas de bons propósitos a meu respeito para a investida dessa manhã.
Engolido o pequeno-almoço à pressa galguei o caminho para a escola, onde já era esperado.
E lá fomos, em direcção à cova dos ginetes, eu à descoberta de mais uma parcela desconhecida de um mundo em que, a pouco e pouco, se iam juntando as peças do seu complicado puzzle.
«Chiiiiu...! -alertou o Tricas quando lhe perguntei se queria nozes. Não fales e não faças barulho com os pés, senão ele foge. O Cuco é muito espantadiço, e depois está horas e horas sem voltar ao ninho».
Sustive a respiração no mínimo indispensável e fui repetindo os passos do meu companheiro, seguro de que o seu rasto seria o mais indicado a seguir.
Ao chegarmos às imediações da grande cova, noutros tempos uma exploração romana de minério assinalada por marco milenar, fez-me sinal para a contornar-mos pelo lado esquerdo, em direcção a uma grande árvore que logo calculei ser a anfitriã do almejado esconderijo.
Sorrateiramente o Tricas puxou-me para o seu lado, já em cima da velha amoreira e, esticando o braço, apontou para um ninho robusto, mas disfarçado, que se adivinhava em pernada inacessível.
«O Cuco está lá a chocar…, não o vês?» -segredou-me mesmo em cima do ouvido, provocando uma comichão arrepiante.
Efectivamente sobressaía qualquer coisa escura por cima do rebordo do ninho, que adivinhei ser a ave. Pus-me em bicos de pés, com a ilusão de que veria melhor, o que me fez desequilibrar e estatelar no chão, com ruído.
Logo de seguida ouviu-se um chilrear diabólico e um bater de asas apressado de um pássaro preto de bico amarelo que se raspou num ápice, tempo suficiente, contudo, para o identificar com precisão.
Lancei de chofre ao meu amigo:
-Oh! Tricas, aquilo era um melro preto de bico amarelo, e disso não tenho dúvidas! Soltei a exclamação ainda meio aturdido com o logro em que caíra.
O Tricas gozava o pratinho em sonoras gargalhadas e, agarrado à barriga, não precisou de articular palavra para dizer que me pregara grande partida.
De cara séria e amuado fiz tenção de regressar à escola, não sem pôr em acção a única arma que tinha para vingar o desplante:
-Fica sabendo que não vais trincar uma única noz, e muito menos passas - sentenciei.
«Espera um pouco e deixa-me explicar porque te trouxe aqui» -argumentou, insinuante e fazendo-me perceber que a fruta seca, no momento, era pouco importante. «Ontem descobri que tu não sabias o segredo do Cuco. E hoje, mesmo que o melro não se tivesse espantado, ia acabar por te contar. Não leves a mal porque não tive o propósito de o fazer por tal».
-E que segredo é esse? -inquiri meio irritado ainda.
O Tricas, então, disse o que tinha a dizer:
«O Cuco é uma ave que não presta, só me dando vontade de torcer o pescoço a quantos houver. Tu andas iludido com a falinha mansa de um cantar agradável. Mas agora ficas a saber que o passarão, para não ter o trabalho de construir o seu próprio ninho, vai pôr os ovos, à socapa, nos ninhos das outras aves. Estas, sem se aperceberem da intrujice, chocam-lhe os ovos e criam-lhe os filhotes».
-Mas isso é horrível, Tricas! Queres dizer que o Cuco se aproveita do trabalho das outras aves, e logo do trabalho mais cuidado que fazem, o da criação?
Devo ter mostrado um ar de indignação e amargura tal, que ele, em posição de ataque inicial, apressou-se a intervir em defesa do Cuco:
«Espera aí, não penses tão mal do Cuco que é um animal e age por instinto…, eu estava a falar de cor, pois não me passa pela cabeça torcer o pescoço a qualquer ave».
E rematou, em estilo de conclusão:
«O pior é que anda muita gente a imitar o Cuco, aproveitando-se do trabalho dos outros, mas com a diferença de que sabem o que estão a fazer. Tenho ouvido o meu pai contar histórias desses “cucos”…, a quem chama um nome esquisito... penso que é “oportunísticos”».
De regresso à escola, peguei no embrulho das nozes e das passas e depositei-o nas mãos do Tricas, como se de um prémio ganho se tratasse.
Eu, para mim, aprendi com ele essa grande lição do reino animal.
A.C.
(não deixemos que os "Cucos" nos façam o ninho atrás da orelha).
11 comentários:
lindo conto
que lição a reter
gostei muito
André Silva
Com mensagem subjectiva...Tens razão LUIS, andam por aí muitos "cucos" a tentar por ovos nos nossos ninhos...espero que fiquem todos gorados!!!
Um abraço,
Manel Augusto
Há quem tenha este dom de criar e recriar histórias que nos deliciam.
O Dr. Luís Galhardas já aqui demonstrou que domina a escrita em vários estilos. E como médico, trabalhanado em Évora, tem ajudado os alandroalenses que dele têm precisado na hora H.
Um exemplo, sem dúvida!
Luís percebe-se muito bem a mensagem sobre os pequenos cucos que agora andam, por aí amancebados com meia dúzia de aves de rapina. Torpes e mal intencionadas. Quanto ao teu conto , Luís, encantas porque estás numa fase em que escreves o romântico com uma mensagem cada vez mais realista. Um abraço,
Antonio Neves Berbem
Chico: que destino deste a outros três comentários aqui colocados? - um deles era do amigo Manuel Augusto. AC
Chico: peço desculpa por não ter lido a explicação já dada. Penso que não vale a pena publicar o meu comentário refilão.
AC
Pois é amigo AC...havia até mais comentários, mas como explico dentro do pouco que sei foi tudo ao ar.
Talvez os Senhores que recuperaram já o dia de ontem ainda venham a recuperar os comentários perdidos.
Para que conste o primeiro foi-me enviado por mail porque o "comentador" não conseguiu colocá-lo.
Um grande abraço
Chico
Comentários recuperados:
Com mensagem subjectiva...Tens razão LUIS, andam por aí muitos "cucos" a tentar por ovos nos nossos ninhos...espero que fiquem todos gorados!!!
Um abraço,
Manel Augusto
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Há quem tenha este dom de criar e recriar histórias que nos deliciam.
O Dr. Luís Galhardas já aqui demonstrou que domina a escrita em vários estilos. E como médico, trabalhanado em Évora, tem ajudado os alandroalenses que dele têm precisado na hora H.
Um exemplo, sem dúvida!
anónimo
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Sobre "Os Cucos" comentarei que "é mais um MUITO, MUITO BOM trabalho" do Dr. Luis Fernando
rejuvenescedor do nosso pensamento.
Mas, comento mais: Á ilustração atribuo NOTA MÁXIMA.
Perfeito enquadramento, a meu ver...
Abraços para todos
Tói da Dadinha
Apenas e SÓ:
E X C E L E N T E !!!
O comentário escrito pelo Tói obriga-me a dar uma explicação, que já devia ter sido dada: algumas das minhas "estórias" são ilustradas pela Dr.ª Paula Costa, minha amiga e colega médica, pintora e proprietária da Galeria 21, em Évora,Rua de Santa Maria, local onde se organizam exposições de pintura, escultura, conferências, cursos sobre arte, etc. A todos peço desculpa por não ter feito esta referência.
AC
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