segunda-feira, 23 de maio de 2011

COLABORAÇÃO - EVELINE SAMBRAZ

" As Voltas Trocadas "

Ontem, tive a notícia da morte dum companheiro de infância. Colega da escola primária. Da primeira à quarta classe.
Morreu nos Açores, onde era professor universitário. De doença prolongada, segundo me disseram.
Depois da escola primária apenas nos encontrámos acidentalmente. Eu segui para continuar os estudos no colégio das Dorotéias, em Évora, e ele foi trabalhar para o monte dos Tomazes. Encontrávamo-nos durante as festas do Senhor São Brás dos Matos. Quase sempre.
Mais tarde, voltámos a encontrar-nos, já na universidade. Eu em história, ele em veterinária. Eu tinha seguido o curso normal dos estudos; ele era trabalhador-estudante.
Acabou por se licenciar já depois da revolução. Em 78 ou 79, não tenho a certeza. Depois da licenciatura, casou, e foi para as ilhas. Fui tendo notícias avulso da sua vida e acabei por saber que tinha morrido pouco depois de se aposentar como professor da Universidade dos Açores.
Não interessará muito saber da vida deste homem, tanto mais que, aqui na aldeia, para além da família, poucos se lembram dele, mas, para mim, é importante recordá-lo. Sempre o tive como o melhor exemplo de força e tenacidade para singrar na vida.
Portanto, esta crónica, é escrita mais para mim mesma do que para quem a ler.
Quero deixar este testemunho sobre um velho companheiro de quem guardo as melhores recordações.
E é exactamente sobre esses tempos de infância e adolescência que irei falar.

De família muito pobre, logo que terminou a escola primária, começou a trabalhar no monte dos Tomazes, como zagal, ajudante do maioral do gado. Até aos dezoito anos, idade em que foi para a tropa, viveu sempre afastado do monte e da família, dormindo em "choças" e ao relento, dependendo da época do ano. Apenas ia ao monte uma vez por semana para fazer o avio que, normalmente, constava de um pão, um bocado de toucinho e uma "corna" de azeitonas, quase sempre sapateiras. As visitas à família eram muito espaçadas, uma vez por mês, quando muito. Era quando vinha trazer o dinheiro da jorna que, sendo pouco, servia para ajudar a pôr o pão na mesa aos irmãos mais novos.
Mas não vivia isolado; tinha uma companhia. E é aqui que eu entro nesta fase da sua vida.
Foi assim :
Numa ocasião em que nos encontrámos, exactamente na festa do Senhor São Brás dos Matos, andaríamos aí pelos nossos catorze, quinze anos, pediu-me livros emprestados afim de poder matar o tempo lá pelas pastagens em que andava semanas a fio, pastoreando o gado. Também me pediu para eu me inteirar do preço de um daqueles novos rádios de transistores - « Daqueles que se podem transportar nas mãos e que funcionam com pilhas » - foi assim que me falou.
Com os livros encheu logo uma das bolsas do alforge, e o rádio chegou uns meses depois. Também era eu quem, de tempos a tempos, se encarregava da substituição das pilhas.
Passados uns anos, poucos, numa ocasião em que o procurei, pois não o via há muito tempo, uma das irmãs, disse-me que tinha assentado praça na marinha e que andava pelas guerras de África.
Só voltei a vê-lo no princípio dos anos setenta, já na universidade, quando eu estava a terminar o meu curso e ele a começar o dele. Era trabalhador-estudante, como me parece já ter dito.
Foi nessa ocasião que me disse que ainda conservava o rádio que eu lhe comprara. Tinha sido a sua fiel companhia dos anos de adolescência. Passava o tempo a ouvir a BBC, o Rádio Argel e, em noites de boa onda, até o Rádio Moscovo.
Tinha feito o ensino secundário enquanto cumpriu a tropa e agora estava em veterinária.
Nunca lhe tinha passado a mania de tratar dos animais.
Depois da revolução de Abril, ainda nos encontrámos com alguma frequência. Partilhávamos muitas afinidades sobre tudo o que se estava a passar no nosso país. Os contactos acabaram quando ele foi para os Açores.
Tive agora conhecimento da sua morte !
Para sempre ficará na minha memória, como uma das melhores pessoas que conheci.
Aos que habitualmente lêem o que escrevo, e se por acaso isto interessar a alguém, peço desculpa por este desabafo de ordem pessoal.
Obrigado pela paciência !
Eveline Sambraz
Mina do Bugalho
Maio de 2011

10 comentários:

Anónimo disse...

Outros "duros" tempos cara Eveline que o seu amigo conseguiu "vencer".
Pena é já não fazer parte "dos vivos".
Permita-me felicitá-la pelo comentário recordatório que, reflectindo uma de entre outras formas de vida, ao de menos bem merece ser objecto de leitura pela geração que se auto-intitula!!! de "Á rasca".

Apelo á continuidade dos seus sempre benvindos escritos.

Abraços para todos.

Tói da Dadinha

Anónimo disse...

É bem verdade que esses tempos eram duros, havendo quem lutou e os venceu. Este, parece-me ser um bom exemplo.
Mas agora, Sr. Tói, esta geração também tem bons motivos para se sentir à rasca. Deus queira que os consiga ultrapassar.

Faço votos e irei votar por isso.

Anónimo disse...

Eveline

Várias vezes tenho sido tentada a comentar os seus escritos, que tanto aprecio, mas esta coisa dos blogs gerando conversas com quem não se conhece é muito contra o meu feitio de mulher recatada a gozar também o descanso da reforma (enquanto a forem pagando).
Hoje não resisti, o seu escrito comoveu-me, de tal forma me tocou o que nos transmite sobre a perda desse amigo. Os meus sentidos pêsames, pois apesar de não se tratar de um familiar seu, vejo que o infeliz desenlace o carregou de tristeza e luto.
Ao mesmo tempo, o desabafo sobre morte do seu amigo doutor veterinário fez-me deduzir, a propósito da Eveline referir os seus estudos no colégio das Doroteias em Évora, que fomos colegas de estudo nesse bendito colégio que também frequentei.
Só que de todos os nomes que recordo desses meus tempos de juventude, não consigo descortinar nenhuma Eveline, um nome nada frequente nos montes e aldeias do nosso Alentejo. Sim, sei o que está a pensar, a minha memória era uma vez...
Conto que aqui escreva as recordações desses tempos inesquecíveis, pois, quem sabe, no relato de eventos comuns eu consiga transportar para o presente o seu belo nome: Eveline!
Envia-lhe beijinhos afectuosos,
Francisca

Anónimo disse...

Cara(o) comentador de hoje (16,17h.).
Penso que com a inclusão dos pontos de exclamação no meu comentário apoiei os SENTIMENTOS sobre os "enrascamentos".

Tenho passado por poucos, tenho.

Abraços para todos

Tói da Dadinha

Anónimo disse...

Para a Francisca :

Também eu andei nas Doroteias e não me lembro da Eveline.

Andei lá de 59 a 63.
Completei o antigo 5.º ano no colégio. Eu era aluna interna.
Lembro-me de duas Franciscas. É pena que não tenhas colocado o apelido. Como sabes as Irmãs obrigavam a que no tratamento entre nós o apelido fosse referido.

Também me comovi com a escrita da Eveline, mas por mais voltas que dê à cabeça, não consigo lembrar-me dela.

Um beijinho da Rita Alcobaça !

Anónimo disse...

Rita

Por razões de exposição, não quero destapar o meu apelido. O certo é que contactei com várias correlegionárias com quem tenho mantido contacto regular e nenhuma se lembra da Eveline. E fazem o mesmo reparo que anteriormente fiz - um nome que nunca ouvimos vindo das pias baptismais, ainda por cima oriundo de uma aldeiazinha do concelho do Alandroal. Recomendo precaução, pois aqui pode haver gato escondido com rabo de fora.
Para ti Rita Alcobaça, cuja memória me é recusada, lembro-me bem de uma Rita Alcobia, de Moura, envio mil beijinhos (o meu cérebro anda muito escangalhado).

Francisca

Anónimo disse...

Carissima EVELINE..não faço a mais pequena ideia, de quem foi o desditoso que nos deixou, mas pelas suas palavras e pelo sentir que delas transborda, decerto foi alguém que marcou a sua vida de uma forma abrangente, assim sendo e perante tal dor...aqui deixou o meu abraço de solidariedade e conforto, permitindo-me até, deixar o meu ombro para que possa deixat rolar uma lágrima...
Jamais deixaria que algo lhe venha a suceder...
O ser uma escritora, tem a suas emoções!?...
Um abraço,sentido...
HOMERO

Anónimo disse...

Rita Alcobaça

Antes de falar da Eveline, quero dizer-te que estou muito magoada contigo. Parece impossível que sendo a tua casa a pouco mais de meia hora da minha, há mais de um ano que não me vens ver. Podes dizer que a distância é igual para os dois lados, mas a minha dificuldade de deslocação é muito maior que a tua. Como tu muito bem sabes e não vale a pena trazer à baila.
Posto isto, e esperando que apareças, deves ter de facto a cabeça muito cansada para não te recordares da Eveline
A Eveline era aquela miúda magricela, meio "aspanholada", que andava sempre a cantar sevilhanas.
Foi ela que acompanhou à viola as novenas de Maio, quando a Irmã Santiaga - era assim que nós lhe chamávamos - a organista do colégio, esteve doente.

Quanto à Francisca que também já aqui comentou, e visto ela não se querer identificar, não sei qual das duas ou três, que andaram lá pelo colégio, será.

Eu, como já identificaste, sou a Carmo - Maria do Carmo -

Um beijinho para ti e outro para a Eveline. E outro para a Francisca, seja lá ela qual for.

Anónimo disse...

Sempre que surgem no blog textos da Eveline eu leio com muito agrado. A sua escrita é sensata e ponderada, com jeito de romance, este último com sabor Camiliano ao contar-nos um pouco da vida e morte do veterinário dos Açores, que já deu pano para mangas em comentários de ex alunas do colégio das Doroteias.
Em tempos catrapisquei o olho a uma pequena do dito colégio..., mas fora isso, no restante conteúdo do assunto, passo ao largo. São saias a mais.
Boa nôte (como dizia o Melo)

AC

Anónimo disse...

Obs.

Se me vou desviar um pouco que seja do que a E.Sambraz reputa, reporta e quer narrar-nos,penitencio-me.


Mas é que.
Bom,eu acho que a E.S.( também gosto muito da sensibilidade portuguesa e feminina do nome) cruza,descruza,entrecruza as personagens de tal maneira que o Colégio das Doroteias, às tantas dá a impressão que, ou era uma cantera ou era um harèm em potência, onde eram mais as pecadoras do que os próprios contados pecados.
Mesmo que fosse só em primordiais pensamentos.

Mas, se mesmo assim,sou eu que estou enganado,porque é que a Eveline S. nos pede para termos paciência. Sempre mais Paciência.

Por outras palavras,as Doroteias eram Santas e os pretendentes a doroteios eram santos?

Alguém aqui no Al Tejo pode estar certo disto?

Ps:
E.Sambraz, é capaz de ter uma palavra sobre estas minhas insanas palavras?


Com as melhores saudações


Antonio Neves Berbem