domingo, 24 de abril de 2011

COLABORAÇÃO - DR. LABOREIRO

Divagando sobre a “Canção de Protesto”


“A cantiga (ainda) é uma arma e eu não sabia, tudo depende da bala e da pontaria”
(Citação feita por Manuel Halpern (in Jornal de Letras)

Têm sido oportunas as referências tecidas em volta da cantiga “Parva que eu sou” (letra e musica de Pedro Silva Martins), que os “Deolinda” apresentaram recentemente (com surpreendente sucesso) nos Coliseus (de Lisboa e Porto). A canção afirma-se simples, mas não é redutora: antes se mostra com uma mensagem de consciência interessada em levar, mesmo utopicamente, o mundo a repensar-se, a problematizar-se, com vista a atingir uma sociedade/humanidade melhor – com particular incidência na sociedade portuguesa; assim, não se trata de uma mera peça de entretenimento; antes procurando conduzir as consciências á participação do destino social.
Embora a canção “Parva que eu sou” nos ofereça um início de constatação de desconforto social (miscigenada com um certo conformismo), no entanto no final da letra surge-nos com uma incitação à acção, à atitude de uma revisão de situação. É certo que a peça dos “Deolinda”, na musica, não tem a carga melódica revolucionária do “Avante, Camarada Avante” ou o de “O que faz falta” , ou mesmo da “Grândola Vila Morena” – pois tem dificuldade em apelar ao acompanhamento coral em voz alta (numa manifestação – por exemplo); porém. Constitui uma preocupação de denunciar um mal-estar social, e de se identificar com um segmento social (maioritariamente os jovens desempregados).
A propósito da “canção de intervenção” José Afonso dizia: a canção de intervenção implica um envolvimento com identificação crescente, do próprio cantor com aquilo que se está a passar nas diversas lutas, por mais heterogéneas que sejam, nas quais ele, de certo modo intervém, não apenas ao nível da canção. Porem, “Parva que sou” manifesta um claro sentimento de cumplicidade com a luta da juventude.
Podemos notar ainda que, apesar da canção dos “Deolinda” não nos facilitar uma vocação coral (que oferecem “Esta vida de Marinheiro” (de Aguardela) ou a “Casinha” (dos Xutos e Pontapés), o certo é que o sucesso da cantiga vocalizada por Ana Bacalhau (revelando uma estrutura musical que conduziu ao coro) foi indicador de uma comunhão de sentimentos e opinião).
É caro que, “Parva que eu sou” não gira em redor de uma preocupação estrutural de um sistema ideológico; mas igualmente estamos cientes de que cantar uma canção poderia não significar nada se o publico não se identificasse com aquela letra (que penetraria entoada harmonicamente ao sabor da melodia): e os “Deolinda” tiveram direito ao sucesso, pelo que nos foi dado a conhecer.
- No prefácio do livro “Canto de Intervenção” (de Eduardo M. Raposo) – apresentação feita pelo Museu da Republica e da Resistência – podemos ler a certa altura: “a canção de intervenção marcou de forma indelével os estudantes e operários que sustentaram nas ruas, nos locais de trabalho e na actividade cultural o processo democrático que se seguiu ao golpe militar do “25 de Abril”, tendo mesmo muitos dos militares empenhados nesse movimento sido directamente influenciados pelas mensagens explicitas ou codificadas dessas canções. Defendendo a emergência de novos valores e mentalidades que substituíssem os retrógrados princípios que enquadravam jurídica e socialmente a família e a condição feminina, a canção de intervenção transbordou dos meios estudantis… para as colectividades populares de cultura e recreio, animados por responsáveis politicamente empenhados no fim da guerra colonial e no derrube da ditadura do “Estado Novo”. E nessa epopeia de politização e patriotismo – que veio reatar o protesto antimonárquico de a “Portuguesa” (de Alfredo Keil) ou da sinfonia “A Pátria” (de Vianna da Motta) – teremos de recordar incontornavelmente José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Luís Cilia, Francisco Fanhais, Manuel Freire, José Jorge Letria, Barata Moura, Fausto, José Luís Borges Coelho, ou José Mário Branco e agora “Os Homens da Luta”, os poemas de Manuel Alegre, Rosália de Castro, Manuel da Fonseca, Carlos Oliveira, Ary dos Santos, a acção agrupamentos teatrais dos Estudantes de Coimbra, Lisboa e Porto (pela temática da sua programação, a um tempo de alta qualidade estético e politizadora), a actividade assistencial ao teatro estudantil por parte do profissionalismo de António Pedro, Jorge Listopad e Paulo Quintela, a actividade dos cine clubes de Lisboa, Porto e Coimbra, e ainda a feliz acção aculturadora das sociedades recreativas e culturais da cintura industrial de Lisboa, porto e Coimbra (sendo estas últimas, pelo menos, centros de oportuna aculturação cívica com a colaboração estudantil da Associação académica de Coimbra).
No dealbar do Estado Novo, são de nítida lucidez as palavras de António Sérgio proferidas numa conferencia em Coimbra: dizia ele “O problema da cultura, o problema da mentalidade; este é, se não me engano, o problema característico de Portugal moderno, e o mais grave dos problemas da sociedade portuguesa”. Sérgio combatia, desta forma, as linhas – de - força do nacionalismo primativista de que o golpe de 28 de Maio se aproveitaria (demonstrando António Sérgio as ideias infundadas de fatalismo, saudosismo, sebastianismo, de “alma” do povo português, de conformismo, derrotismo e miserabilismo – enquanto conceito sobre o nosso povo). E, efectivamente, o que dizem os nossos badalistas e trovadores dos anos 60 e 70 (do século passado). É que se deveria libertar o nosso povo dos condicionalismos estruturais e conjunturais em que mergulhamos desde a cultura à economia – pois assim revelaríamos qualidades de excelência (como mostrariam os nossos emigrantes – intelectuais e económicos – nos países que os acolheram: tal como haviam revelado os “estrangeirados” do séc- XVIII, que Marquês de Pombal havia enviado a “beber” a cultura e o aperfeiçoamento em sociedades mais avançadas e desenvolvidas).
Afinal, era a mudança de estruturas que se propunha: quer nos “Vampiros” (de José Afonso), ou na “Trova do Vento que passa” (de Adriano Correia de Oliveira), na “Pedra Filosofal”(de Manuel Freire), no “Depois do Adeus” (de Paulo de Carvalho), ou na “Parva que sou” (dos Deolinda) , ou ainda em “Qual é a tua ,ó meu” (de José Mário Branco),
É no fundo, o questionamento do país, da sociedade –por alguem que, estando à janela do mundo, faz a canção à mercê do que observa dia-a-dia, em função da sua formação ideológica e estética.
José Alexandre Laboreiro

(Transcrita do Jornal Folha de Montemor (Abril 2011) – e publicada com a devida autorização do Autor).

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