João José e Maria da Conceição ---- 1937 ----
(Entre a violência, uma história de amor.)
(Continuação)
Depois da irmã mais velha servir o pai, todos comeram dos acepipes que a velha cozinheira do monte da Mota confeccionara durante a noite, com a indicação expressa do dono da casa, de que queria o melhor para aquele almoço. Isto foi dito ao João José pela Maria da Conceição, quando, depois do repasto, se afastaram um pouco, acompanhados à distância por uma das irmãs. Travaram o seguinte diálogo:
---- " Vês, já não é preciso fugirmos para realizarmos os nossos sonhos!... "
---- " Nunca pensei que o teu pai cedesse desta forma e tão rapidamente. "
---- " Quanto ás regras a que o papá aludiu, não te preocupes, são muito simples. "
---- " Vamos para junto dos outros. Não vale a pena incomodá-los.
---- " O meu pai atribuiu muita importância a este almoço. Mandou pôr muito cuidado na comida.
Regressaram para junto dos restantes e integraram-se na conversa, com o João José a admirar-se pela simpatia que descobria nas irmãs da namorada e nos cunhados, e até no velho lavrador. Pois foi assim que o namoro começou oficialmente. Escusado será dizer que não cumpriram nenhuma das regras impostas naquele dia. A namorada arranjou sempre maneira das tornear, e volta e meia, lá estavam eles a dormir juntos nos mais diversos lugares, verdade seja dita, com a cumplicidade das irmãs. Passados uns meses, começaram a pensar em casar. Sondado, o pai da noiva, respondeu desta forma: ---- " Só quando o teu namorado se deixar dessa vida de contrabandista, e, sobretudo, quando deixar de ajudar esses republicanos espanhóis que estão, a toda a hora, a fugir para cá. Será que o rapaz não vê o perigo que corre? Julgas tu, porventura, que o teu pai é parvo e não sabe o que se passa? Rapariga, tem juízo e diz ao João José que o tenha também. " ---- Foi assim que a conversa sobre o casamento foi encerrada por mais uns tempos. Por pouco tempo, aliás. Passados uns meses, foi o próprio Don Miguel da Mota quem trouxe à conversa esse assunto. A Maria era a única filha ainda solteira, a outra casara nesse mesmo ano e o velho lavrador, sentindo-se doente, não queria morrer sem deixar todas as filhas casadas. Ficou assim aprazado o casamento para o verão de 1938. Na tarde em que, formalmente, a Maria da Conceição foi pedida em casamento, deslocou-se ao monte da Mota toda a família Rodriguez Potra. Todos fizeram apuros de elegância, e lá marcharam para casa do velho fidalgo, cientes da felicidade que o mano João José procurava, até porque era o primeiro dos irmãos a dar semelhante passo. Convencidos da necessidade daquele casamento estavam todos, pois nos últimos meses, tinham sido dadas provas de amor suficientes tanto por um como por outro. Calculem que a Maria da Conceição até tinha acompanhado o João José e o compadre Manuel Ferrador numa saída a Espanha, para resgatar a viúva de um antigo contrabandista, companheiro de armas, que tinha sido fuzilado pelos falangistas. Até o compadre Manuel Ferrador, que ao princípio tinha duvidado dela, disse ---- " Tens aqui mulher para te acompanhar na vida, João José " ---- Não se livraram nessa tarde, dum daqueles discursos que o futuro sogro de João José, gostava de fazer. Depois do pedido formal da mão da noiva, feito pelo mano velho, Francisco Rodriguez Potra de Avelar, teve a palavra o dono da casa. Todos esperavam mais um daqueles longos discursos enfadonhos em que Don Miguel da Mota era exímio. Enganaram-se.
Saiu assim:
---- " É com muito gosto, mas também com muita apreensão que entrego a mão da minha filha mais nova, a nossa bebé, ao seu noivo aqui presente. Com gosto, porque é visível que se amam. Desde que eu próprio me enamorei da mãe dela, que não assistia a um amor igual ---- as minhas outras filhas que desculpem o seu pobre pai por dizer isto ---- tenho a certeza que nunca faltará amor na vossa vida, vida essa, que espero seja abençoada por muitos filhos. Com muita apreensão, porque sei que o João José nunca mudará, pelo contrário, sei que a mudança se dará, isso sim, na minha filha. Mudança essa que já começou. E já agora, para que não pensem que este pobre velho perdeu de vez todas as faculdades, vou aproveitar esta ocasião para dizer a todos vocês que nunca me enganaram. Ao Francisco e ao Rufino, e também ao meu futuro genro, quero dizer que desde o início percebi que se serviram de mim naquele caso do António Pombo. Não se perdeu nada, pois ele tampouco valia alguma coisa. Mas eu percebi, tomem nota, e levei até ao fim o vosso plano. Só por isso, acho que mereço o vosso respeito e a vossa gratidão. E também porque sei, que lá no fundo, são boas pessoas, quero que sempre se sintam bem nesta casa. Em jeito de desabafo, também gostaria de lhes dizer, que me sentiria muito melhor, e mais confiante, se vocês não tivessem sempre o dedo no gatilho. Quanto ao João José e à minha filha, também quero dizer que não me enganaram. Eu sabia muito bem que as regras, por mim estipuladas para o vosso namoro, não iam ser cumpridas. Ou pensaram que tinham inventado alguma coisa ? Hoje sou velho, mas ainda me lembro do tempo em que era novo, e também me lembro das regras que me mandaram cumprir e que eu não cumpri. Já me alonguei muito, provavelmente disse o que não devia, mas pior seria se não lhes desse mais esta lição de vida. Que vos aproveite. E muita felicidade para todos, especialmente para os noivos. " ----
Discurso longo, mas não enfadonho, como se vê.
Todos ficaram calados. O silêncio era de cortar à faca. E foi Rosalía, essa mulher enigmática, quem primeiro começou a bater palmas. Depois, todos a seguiram. Pois foi assim que o João José e a Maria da Conceição ficaram noivos.
O casamento seria dentro de dois meses.
Rufino Casablanca
Terena, 1999
(Para continuar)
Sem comentários:
Enviar um comentário