quarta-feira, 26 de agosto de 2009

MEMÓRIAS DO RUFINO CASABLANCA - PEÇAS SOLTAS NO INTERIOR DA CRCUNFERÊNCIA

(Continuação...)

João José e Maria da Conceição ---- 1937 ----
(Entre a violência, uma história de amor.)


João José Rodriguez Potra e Maria da Conceição da Mota, conheceram-se na noite em que o António Pombo foi assassinado no sítio dos Capuchos, junto à praça de touros em Vila Viçosa. Como devem estar lembrados, um republicano espanhol em fuga, tinha-lhe metido uma bala na cabeça. Foi naquela noite, em que se permitiram todos os excessos, na companhia do pai da rapariga, Don Miguel da Mota, lavrador fidalgo, que levou para sua casa todos os três irmãos Rodriguez Potra, onde tiveram que pernoitar, pois já não estavam em condições de voltar a subir para as selas, tal a quantidade de copos que tinham bebido. Logo nessa noite se agradaram um do outro. Ela, de dezassete anos, ruiva e sardenta, com longos caracóis em canudo, presos por um laçarote branco, o sorriso mais luminoso que João José tinha visto até então, e uns dentes tão brancos e brilhantes que o encantaram. Ele, de vinte e três anos, alto e magro, com pele muito branca, vestido com um fato escuro e chapéu de aba muito larga. Pareceu-lhe a ela, que entre os irmãos, era o que tinha mais tino. E não se enganava. Quando, dias depois, João José apareceu, acompanhado das irmãs, Guadalupe José e Rosário José, para pedirem desculpa por eventuais desfeitas ocorridas nessa noite de tristes figuras, a simpatia inicial, confirmou-se. Ela, era a mais nova de quatro irmãs, duas já casadas, mas que viviam ainda no monte da Mota, em companhia do velho pai, pois o monte era um enorme casarão que dava para albergar toda aquela gente. O romance começou daquela maneira. Viram-se, e nunca mais deixaram de pensar um no outro. Tiveram que vencer muitas e enormes dificuldades, as diferenças entre aquelas duas famílias eram enormes: O pai dela apoiava o Estado Novo e era admirador de Salazar ; O João José pertencia a uma família que, publicamente, repudiava o regime, e todos sabiam, ajudava os refugiados republicanos espanhóis a fugir do Franquismo; O velho lavrador era amante da lei e da ordem, da organização e do respeito pelas velhas tradições ; O João José era contrabandista, e por mais que uma vez se envolvera, juntamente com os irmãos, em cenas de extrema violência, que não raro acabavam no âmbito da justiça ; Em casa da rapariga, respeitavam-se os mandamentos da Santa Madre Igreja, e todas as irmãs, Maria da Conceição incluída, tinham recebido uma educação católica e eram portadoras de todos os sacramentos que uma grande devoção impunha ; Em casa de João José, ninguém era baptizado pela igreja, faziam alarde de serem ateus, e até se dizia que eram todos comunistas, " rojos," com gostava de acentuar Francisco, o irmão mais velho. Não havia pontos em comum, como estão a ver. Tudo os separava. Mas aqueles dois gostaram um do outro e acabaram por levar a sua avante. Sabem ---- é que o amor faz milagres ---- sim, essa conversa do amor fazer milagres, não é só invenção de escritores e cineastas, conforme vão ver. Assim que a fase dos olhares acabou, e eram olhares intensos, posso garantir, começaram a passear a cavalo, pelos mesmos lugares, como que encontrando-se por acaso, mas nós sabemos que o acaso não tem nada a ver com estas coisas. Era porque eles faziam por se encontrar, primeiro, como quem não quer a coisa, depois, já com a vontade dos dois assumida, e por fim, após a declaração do João José, já passeavam com algum descaramento e indiferentes a quem os pudesse ver. O pai das raparigas, Don Miguel da Mota, todos os domingos mandava equipar o trem de parelha e levava, à igreja de Terena, afim de assistirem á missa, toda a família, genros incluídos. Quando descobriu isso, também ele, João José, passou a frequentar o adro da igreja, na hora da saída da missa. Essa atitude, soube mais tarde, caiu muito bem ao pai da moça. Era vê-lo, de verão, com fato de cotim, corrente de relógio e chapéu na mão, cumprimentando toda a família, com aquele ar sério que só ele conseguia compor. ---- " Como lo consegues, hermano ? " ---- Perguntava Francisco com ar de troça. De Inverno, envergava o fato de bombazina, de três peças, chapéu e luvas, parecia um señorito, e a postura era a mesma. Por essa altura já ninguém tinha dúvidas sobre o que ia acontecer: Ou o velho autorizava o namoro, ou aqueles dois resolviam a questão à maneira dos Rodriguez Potra. A Maria da Conceição, parecendo ingénua, não o era assim tanto, e com artes de filha mimada, até porque queria muito ao João José, lá ia levando a água ao seu moinho, e pouco a pouco, convenceu o pai a deixá-la namorar. A primeira vez que estiveram todos juntos, aconteceu no fim da missa, num domingo soalheiro, e tendo Don Miguel da Mota mandado preparar tudo para a realização dum piquenique familiar, foi o rapaz convidado a acompanhá-los, quando, como de costume, estava plantado no adro da igreja. Apanhado de surpresa, coisa que não era habitual nele, parecendo um pouco envergonhado, lá disse que sim, que teria muito gosto, enquanto os olhos dela lhe diziam ---- " Vês, conseguimos, a ti é que te parecia impossível. " ----. Quando chegaram ao local do piquenique, previamente combinado, num recanto frondoso e com água corrente, na herdade do velho lavrador, já a criadagem tinha tudo pronto e em condições de iniciarem a refeição. Logo no início, após o João José alargar as correias ao cavalo, para o deixar à vontade, e depois da irmã mais velha, dispor os lugares à mesa, antes de começarem a comer, o pai da rapariga fez questão de dizer algumas palavras. Assim, exactamente assim, virando-se para o João José :

---- " Aprendi a conhecer-te desde que nos encontrámos na taberna do António da Cinza, aqui há uns meses. Devo dizer-te que a minha opinião a teu respeito e a respeito dos teus irmãos, não era muito boa, mas também é verdade que às vezes são mais as vozes que as nozes e também foi verdade que, naquela questão do António Pombo, vocês agiram muito bem. Eu próprio tive ocasião de verificar isso, e para te ser franco, não gostei da forma como o meu testemunho foi apreciado por aquela gente lá de Évora. Mas isso, são águas passadas. Agora, o que interessa, é o motivo porque este almoço foi organizado. Cedi ao pedido da minha menina, a minha menina bebé. As irmãs dela também já não me largavam a cabeça por tua causa. Eu sei que já sou muito velho e que vida vai continuar depois da minha morte, mas tenho hábitos muito antigos, e exactamente por ser velho, e os hábitos serem muito antigos, já não sou capaz de os deixar. O teu namoro com a nossa Maria da Conceição vai obedecer a regras que eu me dispenso de explicar aqui, ela te dirá quais são. E tenho a certeza que essas regras te serão transmitidas da mesma forma que eu o faria. Conheço bem a filha que tenho. Rapaz, não me faças arrepender daquilo que neste momento estou autorizando. Se alguma vez me arrepender, quero lembrar-te que ainda tu não tinhas nascido, e já eu era o melhor tiro destas redondezas. " ----
Assim falou, sempre virado para o João José, sempre olhos nos olhos. Depois virou-se para a filha e disse:

---- " Estas palavras servem também para ti. Exactamente as mesmas. " ----

Para terminar, disse ainda: ---- " Agora vamos comer que já não é cedo. Que a todos sirva de proveito " –

(Continua)
(amanhã - novo episódio)

Sem comentários: