Quem
era, então Salvador da Costa? Nascido em 1864 em Montemor-o-Novo, de pais
oriundos de Palmela mas fixados na vila, os seus estudos reduziram-se à
escolaridade primária. Era, no entanto, um espírito muito vivo e interessado
pelo mundo em que vivia, leitor de obras de história, colaborador da imprensa
local, com crónicas de caça e outras, como a da visita a Lisboa de Eduardo VII,
com algumas viagens a Espanha no activo e amigo de festas, passeios e caçadas.
Proprietário
de uma padaria na rua das Pedras Negras “A Loja do Preto” (por ter à porta uma
máquina de venda de chocolates formada pela cabeça, tronco e membros superiores
de um preto, a qual pode ser vista no Convento de S. Domingos), transaccionava
em cereais, que comprava aos agricultores da região para vender em Lisboa,
actividade que o obrigava a frequentes idas à capital. Esta faceta é das mais
interessantes da sua personalidade. Salvador da Costa nunca viveu isolado no
interior, alheado do mundo. Pelo contrário, quando redige as suas memórias os
acontecimentos de carácter nacional, políticos ou outros, e os de âmbito
internacional, ocupam um lugar equivalente aos dos simples factos locais, o que
mostra a importância que tiveram na sua vida, pelo menos no plano subjectivo.
Podemos quase dizer que as suas “memórias” são uma crónica da vida nacional e
mesmo lisboeta vista a partir do interior.
Dotado,
segundo o testemunho de familiares, de uma memória espantosa, resolveu, aos 74
anos, escrever as suas memórias, destinadas aos netos. Tal como nelas afirma,
não se serviu de apontamentos ou outros documentos escritos, o que teve como
consequência inevitáveis erros de datação.
Ainda mais tarde, com 95 anos, viúvo
e já de cama, conta a uma das netas alguns episódios da sua vida, dando assim
origem à edição, pela família, de um livrinho intitulado “Alguns episódios da
vida de um homem de 95 anos”, em que repete algumas passagens já reunidas nas
“Memórias”.
Salvador
da Costa foi Presidente da Assembleia Geral da Sociedade Carlista durante mais
de cinquenta anos, e “ferrenho Carlista” que jurou nunca pisar o terreno da
“Pedrista”. Acompanha membros da sua família, que são “Pedristas” até às portas
desta Sociedade, mas retira-se em cumprimento do juramento feito quando tinha
apenas 12 anos de idade. Por fazer parte da “Galeria de Honra”, a sua
fotografia está pendurada no Salão Nobre da Carlista.
Algumas memórias
No
dia 8 de Maio de 1873 morre na sua casa na Rua do Calvário, na esquina com a
Ruinha, o Senhor Matias José Vinagre “Fialho”, o homem que tinha mais dinheiro
em Montemor-o-Novo. Tinha uma casa cheia de baús com pintos de ouro e muitas
outras riquezas, não falando em herdades, que tinha algumas. O seu enterro foi
a um domingo à tarde. Soou que se dava 500 réis a quem o fosse acompanhar à sua
última morada. Eu também fui acompanhar, mas não entrei para a Igreja de S.
Francisco, onde se aguardava a chegada das sacas tendo moedas em prata dos tais
5 tostões. Fui tomar lugar junto dum cruzeiro que havia nesse tempo mesmo em
frente da dita igreja. Ainda hoje, quando passo pelo corredor de S. João de
Deus, eu vejo no meio dos claustros, onde estão muitas pedras com inscrições o
pedestal do tal cruzeiro, que tem lavradas umas cordas, símbolo da Venerável
Ordem de S. Francisco. (A base deste cruzeiro pode ser vista no Convento de S.
Domingos).
Mas
vamos às esmolas, como se chamava a tal dádiva dos 5 tostões. Apareceu um
homem, que se chamava José Maria, empregado dum dos herdeiros do Fialho, a dar
a cada pessoa 200 réis. O dinheiro era em cobre, cada pataca que rachava a
cabeça a uma pessoa, se a apanhasse. O homem era pouco desembaraçado a contar
dinheiro e algumas vezes enganava-se no conto e começava outra vez. Era um
tempo enorme o que se levava com esta lentidão e, demais, toda a gente falava
em 5 tostões e só recebia uns míseros 5 patacos. Além disso, o dinheiro era
pouco e não chegava para tanta gente. Um popular mais impaciente pregou um
pontapé no cesto, o dinheiro foi para o chão, toda a gente a apanhar e começou
o barulho.
Nessa
ocasião vinha já outro homem com um saco com patacos para reforçar a verba, mas
o povo exaltado cortou o saco com navalhas e a patacaria rolou pelo meio do
chão, quem pôde apanhou, eu é que não apanhei nada. Tive medo, fugi para a vila
e só mais tarde, já de noite, é que senti passar muito povo ao alto da Rua
Nova.
Eu
vi quem foi a primeira pessoa que rasgou o tal da patacaria lá na Carreira de
S. Francisco, mesmo ao pé do Senhor dos Aflitos.
No
outro dia, segunda-feira, foi apregoado que quem quisesse 500 réis fosse
receber a S. Francisco. Foi muitíssima gente e dessa vez eram as tais moedas de
prata de 5 tostõe. Era só abrir a mão e cair-lhe essa dita moeda na mãozinha.
Havia menino que ao sair da igreja vinha comas duas mãos abertas e às vezes
apanhavam duas moedas, o que era um mimo nesse tempo, em que o dinheiro tanto
valia.
Eu
também fui ainda até ao pé da Carreira de S. Francisco, mas, no sítio onde se
faz a feira, estava ali formado o Regimento de Cavalaria n.º 5 e, na Carreira
de S. Francisco, um posto do Regimento de Infantaria n. 17. Com tal aparato e
eu um grande cagarola, desisti de me ver possuidor de uma linda moeda de 500
rs.
Nesse
tempo estava em laboração a “Mina dos Monges” e, para que os mineiros cá não
viessem à vila, foram lá levar o dinheiro.
Estas esmolas forçadas foram a meu
ver, uma das maiores vergonhas de Montemor-o-Novo. Houve proprietários e muitos
que foram receber as esmolas.
Nesse
ano começaram as obras do Convento de S. João de Deus para o adaptar às
repartições públicas actuais.
Pelo
Entrudo desse ano morreu a última freira do Convento da Saudação, que assim era
chamado o convento das freiras, onde hoje é o Asilo da Infância Desvalida. O
enterro foi em segunda-feira de Entrudo. Ao enterro foi a população de
Montemor, pobre e rico não faltou ninguém. Eu fui ver o enterro para a torre do
Calvário que deita para o Hospital. Fui mais outros rapazes que iam dobrar os
sinos.
Organiza-se
em Montemor “a primeira corporação de Bombeiros Voluntários”. Veio uma bomba
nova, que ainda existe, e veio um bombeiro de Lisboa que se chamava Dourado,
instruir os novos bombeiros. A 1.ª Companhia eram os músicos da Sociedade
Carlista. A 2.ª Companhia era composta de operários. O primeiro exercício foi
na casa que ultimamente tinha ardido, hoje do Exmo Senhor Dr. Cunhal. Lá fui
ver e muito gostei.
Começaram
os trabalhos para a construção do “teatro da Rua Nova”. As acções eram de
10.000 réis.
Prometo voltar com mais memórias.
.Augusto Mesquita
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