É ali que temos alguns familiares que, devido à sua idade e
às circunstâncias, decidiram trocar a sua casa na margem sul pelo ar salubre do
lugar que os viu nascer. Ali estão, há cerca de quatro meses, o sogro Manuel e
a sogra Vitalina, num retorno às origens, longe das grandes aglomerações de
gente, da confusão dos transportes e de outros factores de risco próprios dos
grandes centros como é a Região Metropolitana de Lisboa.
Em Patalim, a antiga vizinhança foi desaparecendo. Agora, a
visita mais assídua é a Neca, uma gata que ficou sem dono e que não se tira da
porta do monte ara comer e dar de comer à ninhada que só ela sabe onde está
escondida. Á medida que as semanas passam e os gatinhos vão crescendo, a Neca
vai apresentando a casal Serranito a sua felina prole para dar a conhecer, em
caso de alguma fatalidade, onde os filhotes devem ir buscar a comidinha, De
manhã cedinho, junto do poial, forma-se um verdadeiro coro de gatos, que afinam
todos pelo mesmo propósito: o ratinho com comida.
Quanto aos nossos sogros, voltaram aos velhos tempos e
fizeram uma pequena horta, onde foi em tempos a antiga capoeira das galinhas,
fracas, perus e outra criação. Com terra fértil e fartura de água, é ver
trepar, de dia para dia, nabiças, alfaces, feijão, tomate, batatas, salsa, os
imprescindíveis coentros…vai dando para o gasto!
A vaga de calor que se tem feito sentir empurrou a conversa
para outros tempos, para outros verões igualmente escaldantes, m que grande
parte das pessoas não sabia sequer quantos graus acusavam os termómetros.
Estava calor, e pronto!
Sabia-se, isso sim, é que o trabalho era penoso, trabalho
escravo, debaixo de um sol inclemente. Quanto a dormir, era onde calhava, nem
que fosse nas margens dos regos, em cima de uns juncos.
No lugar de Patalim, em noites de calor, homens e rapazes
dormiam nas eiras ou nos quintais. Com palha e umas sacas carvoeiras, estava a
cama feita. O grande inimigo eram os mosquitos, a que alguns divertidamente
chamavam “analistas”. O calor nalgumas casas era difícil de aguentar. Casas
pequenas e baixas. Nalgumas delas, a cabeça quase chegava ao telhado e, para
chegar à chaminé, o pessoal tinha que se agachar.
Recordou-nos o nosso sogro que a casa onde nasceu e viveu
os primeiros anos da sua existência tinha apenas três divisões. A família
Serranito era grande. Só irmãos eram oito: seis rapazes e duas raparigas.
Apesar do telhado ser baixo, saíram quase todos encorpados. Com família
numerosa foi preciso improvisar mais uma ou outra divisão, pendurando sacas de
serapilheira das traves até ao chão. As sucessivas camadas de cal foram quase
dando ao pano a consistência de uma parede a sério. Antecipava-se assim o
moderno pladur.
Durante grande parte do ano os seis rapazes dormiam numa
das exíguas divisões, três para cada lado, cabeça com pés, e pés com cabeça,
tipo lata de sardinhas. O colchão era uma prancha de cortiça e uma pouca de
palha. As sacas carvoeiras, abertas ao meio, serviam de mantas e lençóis.
Interpelado acerca do desconforto que as sacas deviam
provocar no corpo, o Serranito respondeu-nos que essa coisa da comichão é muito
relativa. Quando não se tem mais nada, não há tempo para pensar em irritações
da pele.
As sacas davam muito jeito. Até mesmo no trabalho,
sobretudo na invernia, recorria-se frequentemente ao chamado embrulho, que era
uma saca dobrada em forma de capuz e que protegia a cabeça e o corpo da chuva.
Os Invernos eram rigorosos. Chovia semanas a fio, impedindo que se trabalhasse.
Algumas vezes esperava-se que o tempo abrisse pra se fazer um quartel.
Mas basta de chuva e de frio. Voltemos ao tórrido mês de
Julho. E orque estamos no mês sete, lembramo-nos que foi a 17 de Julho de 1936
que começou a Guerra Civil Espanhola. Franquistas e Frente Popular numa luta
fratricida, disputavam o poder aqui mesmo ao lado, na vizinha Espanha. Nessa
altura, governos como a Alemanha, de Itália e de Portugal estiveram ao lado dos
nacionalistas que apoiavam Franco. Quanto à Frente Popular, o apoio vinha do
lado Soviético. O Serranito, ainda gaiato, lembra-se de ver aparecer em Patalim
grupos de espanhóis à procura de comida. Vinham por atalhos, em carroças
cobertas com toldos, evitando a estrada principal. Traziam angústia e medo
estampado no rosto. À mínima denúncia eram entregues ás autoridades
portuguesas, que tinham ordem para os prender e recambiar para lá da fronteira
onde os aguardava um possível fuzilamento.
Em anos de guerra, Patalim e arredores eram frequentemente
palco de manobras militares. Via-se frequentemente a tropa nos pontos mais
elevados e importantes no ponto de vista estratégico, como o Outeiro e o
Montinho.
Para desanuviar a conversa, o nosso sogro recordou que
havia lá em casa uma cadela chamada Ginja, exímia a caçar coelhos e ouriços. Os
Espanhóis quiseram levá-la a todo o custo, embora não tivessem dinheiro para
pagar. A Ginja lá acabou por acompanhar nuestros hermanos, a troco de uns
pratos e uns talheres.
Falando há dias com uma amiga com raízes andaluzas,
dizia-nos ela que a avó viu o irmão ser morto à porta de casa. A família
fugiria depois para a Azaruja. O pavor foi tal, que a avó nunca mais quis
voltar à sua terra, na província da Andaluzia. Fez questão no entanto de manter
a língua materna. Não dizia uma palavra em português. Também o pai da nossa
amiga, desde pequeno, era conhecido na vila alentejana como “o espanhol”. Para
o pessoal da Azaruja, o recém chegado espanholito era uma verdadeira atracção.
A Guerra Civil da Espanha ficou marcada por episódios
atrozs, que mostram até que ponto pode chegar a bestialidade dos homens. Um
desses episódios foi a devastação de Guernica.
Bombardeiros Alemães reduziram a
cinzas aquela cidade basca. O pintor Pablo Picasso ficou de tal modo
impressionado, que o massacre lhe serviu de inspiração para realizar uma das
suas obras mais famosas, intitulada Guernica. Mais do que uma pintura, o quadro
é uma declaração de guerra contra a guerra e um manifesto contra a violência.
Pois é, estimado leitor. Como vê, as memórias de Patalim
começaram decididamente a confundir-se com as memórias da Europa e do Mundo.
Na primeira metade do Seculo XX viveram-se tempos muito
difíceis. Antes da Guerra Civil de Espanha, a competição económica, política e
militar entre as grandes potências conduziria à Primeira Guerra Mundial
(1914-18). Morreram milhões de pessoas.
Depois da guerra em Espanha, que terminaria em 1939,
aumentou o apetite dominador por parte dos países e regimes mais poderosos.
Prometia-se a criação de um mundo novo, mas a Europa iria ter pela frente,
durante alguns anos, um futuro sombrio. Nesse mesmo ano de 1939, começava a II
Grande Guerra, que só teria fim em 1945.
Uma das consequências negativas provocada pelas guerras e
pelas grandes crises é a escassez de alimentos. A ganância de muitos, a gula de
açambarcar costumam tornar a situação ainda mais difícil.
Os nossos sogros viveram no tempo das senhas de
racionamento. As senhas foram uma forma de fazer chegar bens essenciais a toda
a população, procurando evitar açambarcamentos por parte de alguns. É que,
nestas situações complicadas, como diz o povo, quem se lixa é o mexilhão. A
Intendência-geral dos Abastecimentos, criada em 1943, era a entidade que
tutelava o circuito dos bens essenciais.
A Vitalina Barrenho lembra-se de virem a pé, até Montemor,
buscar as cadernetas que garantiam, na venda de Patalim, a aquisição de arroz,
azeite, açúcar e outros produtos.
Também o Manuel Serranito se recorda dessa realidade. O
abastecimento era feito em função do número de elementos da família. Como o
agregado familiar era numeroso, os Serranitos tinham por exemplo, direito a uma
quantidade generosa de açúcar, que muitas vezes preferiam trocar por pães. O
pão era dos alimentos mais desejados e a sua distribuição implicava normalmente
longuíssimas filas.
Em conversa com outro amigo, o Joaquim Parreirinha, este
relatou-nos as suas idas ao pátio interior da actual Biblioteca Municipal, onde
eram distribuídas as senhas que davam direito à aquisição de géneros nos
estabelecimentos. Gaudêncio era o nome do homem responsável pela distribuição
dos tão ambicionados papelinhos. O nascimento da irmã Vitória, acrescentou
ainda o nosso amigo Parreirinha, foi um acontecimento duplamente feliz, pois
passou a dar direito a reclamar mais umas quantas senhas para a família.
Pois bem, estimado leitor, também nós temos o espaço de
escrita racionado. É tempo de acabar estas Memórias. Como vem o mês de Agosto,
vamos de férias, mas com muito cuidado!
Até um dia destes
Vitor
Guita
In
Montemorense – Julho 2020
Sem comentários:
Enviar um comentário