Manuel de Godoy”
Aonde se fala de acontecimentos que são desconhecidos da
maioria das pessoas.
Acontecimentos que antecederam a Guerra das Laranjas, de
inícios do século dezanove, entre a Espanha e Portugal, e em que os espanhóis
aproveitaram para surripiar aos portugueses a bonita vila alentejana de
Olivença, praça-forte avançada das defesas portuguesas.
Foi
antes da Guerra das Laranjas que o Juanito Gitano foi aos fagotes
ao filho da sua patroa de ocasião, o ilustre e ilustrado, poderoso e
maquiavélico ministro do Reino de Espanha, don Manuel Godoy que, para além de
muitas outras honrarias, ostentava ainda o título de Príncipe da Paz e as
dragonas de Generalíssimo dos exércitos castelhanos. Era ainda amante da Rainha
Maria Luísa de Parma, uma italiana maluca que era ao mesmo tempo a digníssima –
e honradíssima – esposa do rei de Espanha, Carlos IV, monarca então reinante em
Madrid.
(Quem, ainda hoje – 1980 – visitar Badajoz, e passear pelo casco
histórico, numa daquelas ruelas estreitas, entre o edifício do Ayuntamiento e a
Sé-Episcopal, vai encontrar um velho palácio de estilo gótico falso que há
quase dois séculos ali está plantado e que era propriedade desse tal don Manuel
de Godoy, e onde sua mãe, alentejana de Juromenha, o pariu)
Apresentação de Juanito Gitano
Não
que Juanito pertencesse ao povo cigano. Não que fizesse vida de nómada. Tinha
até raízes bem profundas na Vila de Juromenha, fazendo parte de uma antiga
família de artesãos que trabalhavam o ferro há várias gerações. O anexim de
Juanito Gitano, tinha-se-lhe colado, primeiro, pelo facto de se chamar João, e
depois por ter uma cor tisnada, a dar para o moreno escuro que, juntamente com
as feições angulosas lhe davam um ar aciganado. E também, já agora, porque
acompanhava com todos os ciganos da região, chegando a mandriar e a folgar com
eles por todos os Alentejos, Algharbes, Extremaduras e Andalucias, para além de
tudo contrabandear e pelejar se necessário fosse.
Foi
fácil apresentar o Juanito. Dos pobres há sempre pouco para dizer.
E agora – como se preciso fosse – a apresentação de don Manuel
Godoy
Já
mais difícil é apresentar don Manuel Godoy. Dos ricos e poderosos sempre haverá
mais alguma coisa que dizer, e deste ainda mais difícil se torna porque, como
aqui acima já se disse, ele era, praticamente, o dono de Espanha. Era, pelo
menos, um dos seus grandes mandões.
Pois
a senhora mãe de don Manuel Godoy era portuguesa.
De
Juromenha, mais exactamente.
Era
herdeira de uma casa agrícola que ficava ali para os lados do Sitio das
Mimosas. Pertencia a uma velha e arruinada família de fidalguia rural. E
algum do possível interesse do que passaremos a contar reside exactamente nesse
aspecto, pois era nesse monte agrícola que o nosso Juanito Gitano exercia o
ofício de ferreiro, tal e qual como o seu pai o tinha exercido, e aonde desde
sempre residia a sua família.
Divagação sobre um povo dividido por uma fronteira imposta pelos
homens
A
Extremadura espanhola e o Alentejo português são duas regiões irmãs gémeas.
São-no hoje e sempre o foram no passado. Atrevemo-nos até a dizer que são uma
única região se quisermos esquecer as fronteiras que os homens por ali traçaram
e continuam a traçar, esquecendo que essas fronteiras sempre serão ignoradas
por quem nestas raias vive. São terras torradas pelo sol, sempre ficando fora
dos avanços e progressos das ciências e das humanidades, voltadas sempre do
avesso, esquecidas e vilipendiadas por quem sempre as desgovernou, mas com
códigos e honras próprios. Enormes extensões de montados de azinheiras e sobreiros,
algum olival e vinha. E nos barros e planícies muitas searas – propriedade de
apenas uns poucos – a perder de vista. Linhas de água que secam nos pinos do
verão e que nas invernias causam enchentes. Estas terras produzem um tipo de
gente, mulheres e homens, aventureiros e audazes, capazes de tudo, fixem bem,
capazes de tudo. Agarrados à terra, mas também capazes de dela se despedirem e
nunca mais cá voltarem, embora isso seja muito raro. Afinal o Vasco da Gama,
que nasceu em terras de sequeiro, foi navegador e, calculem, foi também
vice-rei da Índia. E o Diogo Lopes de Sequeira idem idem aspas aspas. Sem
esquecer todos os reis, todos os príncipes e todas as princesas da Casa de
Bragança que eram Libatas. Isto é, eram de Vila Viçosa. E muitos outros e outras
certamente houve! No entanto, acompanham-nos sempre, em todos os caminhos
andados, grandes saudade e nostalgias destas terras. O que aqui se pretende
dizer é que as gentes extremeñas e as gentes alentejanas saem, vão para longe,
dão a volta ao mundo com mundo às costas, mas nunca esquecem as terras em que
nasceram. E não raro aqui voltam para morrer. Quase sempre! E quase sempre,
a mais das vezes, tão pobres como quando saíram, apesar das venturas,
honras e farturas porque terão passado enquanto estiveram fora. Ou então
voltam quando amalucam, e nesse caso, quem tem razão é o Acácio, porque nesses
tempos terminais da vida, os que cá ficaram é que têm que os aturar.
Fim das apresentações e regresso à narrativa
Não
foi o caso do homem em apreço. Don Manuel Godoy foi morrer a Paris. E morreu
rico. Morreu rico depois de ter uma rica vida, note-se. Tudo muito bem na vida
deste homem de sociedade, mas do que ele não se livrou foi do Juanito Gitano
lhe ir aos costados. Foi uma sova que o deixou mouco de um dos ouvidos para o
resto da vida.
Aconteceu assim:
Num
dia em que don Manuel Godoy estava de visita a sua mãe, no Monte das Mimosas,
ali para os lados de Juromenha, viu passar uma linda jovem que, ancha de carnes
e muito coradinha, segundo o conceito de beleza feminina desses tempos, formosa
e não segura, ia buscar um cântaro de água à fonte que se quedava nos fundos do
vale da herdade.
De
pouca vergonha como era, aquele patife, seguiu a jovem e, surpreendendo-a à má
fila, dela abusou até saciar os seus instintos lúbricos e maldosos.
Exactamente
por essa hora, estava de regresso a casa, de uma patuscada na Mina do Bugalho,
na tasca do tetravô do Zé Unta, por uma vereda só dele conhecida, o nosso
Juanito Gitano, irmão mais velho da jovem que tinha sido abusada.
Perante
aquele quadro, perante a desfaçatez e atrevimento daquele indivíduo, que não
conhecia, e que se apresentava vestido como um majo espanhol,
e que nem sequer ele, Juanito, sabia ser filho da sua patroa, lançou-lhe as
mãos e ali é que foi malhar. O último golpe, que deixou o majo desmaiado,
foi desferido com um tanganho que estava ali à mão e que deixou surdo do ouvido
direito, e para sempre, o homem que por essa época era o mais poderoso das
Espanhas.
Rufino Casablanca
Terena – Monte do Meio – 19880
(Na próima semana nova História da Raia :- "A TIA CARMELA"
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