quarta-feira, 22 de julho de 2020

VASCULHAR O PASSADO - Augusto Mesquita


                            Igreja Matriz
              Fachada da Igreja Matriz e Monumento a S. João de Deus

 Até à extinção das Ordens Religiosas, a Igreja fazia parte  do Convento de S. João de Deus, e por tal motivo era designada por Igreja de S. João de Deus.
Dispõe-se em traça rectangular, alegre e de alto pé direito, composta por seis capelas laterais (três por banda), absolutamente iguais nas proporções e coevas entre si, coro e abóbada de meio canhão. Esta conserva, afortunadamente, depois do restauro dirigido pela Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, em 1950, sob assistência dos artistas António Costa e José Basaliza, que alijou de uma falsa guarnição rocaille, de estuques policromos, o primitivo conjunto pictórico, mural, laivado de oiro, do tipo de brutescos, laçaria, rótulos e pendurados, mascarões, aves e ofícios – datado, em duas filacteras, de 1762. No eixo, grande medalhão ovóide, metido em lambrequim barroco, representando o Padroeiro com coro de anjos celestiais. Empreitada anónima, que ultrapassou uma década, cronologicamente assinalada desde 1662 a 1679 e que seria realizada com intermitências por artistas de procedência vária em colaboração com técnicos montemorenses, abrange todos os alçados internos do edifício, cruzeiro e capela-mor, estes actualmente perdidos por caiações oitocentistas.                                                                                                                     
tecto do subcoro, de arco rebaixado, encontra-se, do mesmo modo, ornamentado com pinturas deste ciclo, cronografadas de 1679: dominam os elementos naturalistas, albarradas, cornucópias, aves, anjos e símios de simples intenção quimérica. Ao meio, apainelado rectangular, de cor entenebrecida e de sugestão panegírica, do nascimento de S. João de Deus.                                             Caixa de esmolas, de tábua, antiga, pintada no cachaço com cena iconográfica, evoca o patriarca. No rodapé, lambris de azulejaria de tapete, policroma, seiscentista, que abraça toda a nave, aparentemente coetânea;  alguns escabelos do cadeiral de madeira almofadada (com outros escanos arrumados junto do arco cruzeiro e no coro alto), são provenientes, talvez, do coro da destruída matriz de N.ª S.ª do Bispo. Bem concebidas são as duas pias de água benta, esculpidas em mármore regional, de secção descoide e envieiradas (séc. XVII).                                                                                         
As capelas laterais são todas abertas em arcos redondos, moldurados (alguns compostos pelos escudetes simbólicos dos irmãos hospitaleiros – charitas - ) e pintados a fresco, em domínio de oiro, dos assinalados elementos barrocos de ornato e de brutescos.
                                                                 A Pia Baptismal                                      
 A pia do baptismo, venerável histórica e sentimentalmente por nela, segundo a tradição, ter recebido a água da crisma, em data imprecisa de Março de 1495, um dos mais humildes, generosos e universais santos do cristianismo – S. João de Deus -, veio deslocada, em 1843, da capela privativa da Matriz do Castelo, com licença metropolitana, assim como a grade que a fechava e esteve primorosamente pintada e dourada a expensas do povo montemorense. Aquela peça, lavrada em mármore branco, do estilo gótico, quatrocentista, compõe-se de duas partes de secção octogonal: a pia propriamente dita e a base, rude e atarracada, ambas valorizadas no séc. XVII, por recobrimento de pintura a óleo, floral, de que subsistem vestígios. A cancela, de ferro forjado, é exemplar curioso da arte barroca, aparentemente de alvores de seiscentos e do período filipino, composta por balaústres torneados, de andares, intervalados de barras serpentiformes e de volutas com enrolamento, presos a guarnição frontal, esplendente de ornatos e centrada por disco da estrela de oito pontas. Acrotérios fixos, de fogaréus muito arrendados. Os extremos, de madeira pintada, são modernos e foram acrescentados para utilização no local.
                                                                  A pia onde S. João de Deus foi baptizado

Cruzeiro  
 Disposto em planta quadrangular e apoiado em arcadas cegas, redondas, esteve completamente recoberto de pinturas a fresco, coetâneas do corpo da nave e do mesmo estilo concepcional, de brutescos barrocos, do qual conjunto subsistem, apenas, as decorações das molduras dos arcos e da cúpula, esta lançada m linhas hemisféricas nascentes de trompas lisas. A decoração, muito retocada, é distribuída em apainelados geometrizantes e no soco iluminado em perspectiva por balaústres clássicos. Baixo rodapé de azulejos coloridos de maçaroca de milho, abraça os arranques. No alçado do sul, de época tardia da arte rococó, levanta-se discreto altar dedicado primitivamente a Santo António e hoje a S. José (escultura moderna), feito de talha dourada e marmoreada, com meias pilastras, guarnições degrinaldas de frutos, vieiras e lambrequins de fantasia, da transição do reinado de D. José para D. Maria I. Numa arrecadação, guarda-se a pintura sobre tela, do santo taumaturgo, muito maltratado pelo tempo. Na parede sobranceira existiu, até 1949, uma curiosa tribuna disposta em galeria, de entalhe policromado, também do estilo rococó, que o Senado de Montemor havia ordenado em 1729 para nela assistir á missa a família real de D. João V, quando da passagem da corte para as solenidades dos duplos matrimónios dos príncipes herdeiros de Portugal e Espanha, os futuros reis D. José I e D. Mariana Vitória de Bolonha, e D. Fernando VI e D. Maria Bárbara de Bragança.                               
 No local, empobrecido, se colocou uma grande pintura sobre tela, de formato rectangular, bem emoldurada em talha de ornatos polilobados, representando S. João de Deus acolitado por dois Arcanjos. É quadro de algum merecimento pictórico, datável de princípios do séc. XVIII.     

Capela-Mor
De igual modo primitivamente ornamentada no gosto mural do seiscentismo, dessa composição barroca poucos vestígios subsistiram a lamentáveis caiações e a constantes restauros devidos a infiltrações de águas pluviais. Do mesmo modo, quando da montagem do actual altar, se perdeu o apainelado cerâmico, policromo, de padrão naturalista, escapando, somente, o friso do lambril, de desenho de maçaroca, comum em todo o edifício. Opulenta obra de talha dourada sobre fundo azul, que preenche na totalidade o vão do presbitério, é um excelente trabalho de ensambladores desconhecidos (talvez do grupo de mestres eborenses ligados ao ciclo de João da Mata Botelho ou a Jorge Guerreiro da Costa e Joaquim Monge), executado no ocaso do estilo rococó, nos primeiros anos do último terço do séc. XVIII. Antecedido, no arco triunfal, por rico emolduramento concheado, de palmetas, rosetões e na tabela axial pela romã do fundador, o retábulo, lançado em linhas muito equilibradas do tipo de baldaquino, agrada plenamente não só pelos volumes bem distribuídos, como na concepção, desenho e acabamento do frontão apilastrado, com lambrequins e resplendor centrado pelo Espirito Santo. Os fustes, esculpidos em capitelação compósita, estão recobertos de elementos florais, engrinaldados  de sanefas e vieiras planturosas. Em represas ricamente engalanadas e concheadas, expõem-se, no lado do Evangelho, uma majestosa escultura de S. João de Deus, de madeira dourada, com características de princípios do séc. XVII e talvez peça dos fundamentos do convento (1,54 m) e na oposta, o Anjo Custódio S. Rafael, empunhando em açafate os pães da caridade. Esta imagem, também de lenho fortemente estofado e muito interessante é, porém, posterior cerca  de uma centúria. Mede, de alt., 1,62 m.                                     
O camarim, com trono de talha e sete degraus, é terminado por maquineta do estilo rococó, esculpida com braços de volutas recortadas e emolduramento de caprichoso efeito ornamental. O forro desta tribuna, reajustado no ano de 1876, a expensas do devoto António Maria Pereira, recebeu pinturas a fresco tanto nos alçados como na cobertura arredondada, no gosto barroco. Antiga, mas restaurada, é a composição fundeira da cimafronte, da exposição do Santíssimo Sacramento protegido de anjos tenentes. Tudo parece indicar que foi neste período que se perdeu a restante obra pictórica dos prospectos e do apainelado cerâmico, do qual se guarda, num desvão, algumas centenas de azulejos de fabricação lisbonense, seiscentista.                 
Nas obras volumosas do edifício, no priorado de fr. Luís da Piedade, entre 1759-9, do seu pecúlio se ordenou o lageamento do santuário e do cruzeiro, que importou em 87 660 rs., fazendo o assento de ardósia o oficial de pedraria José Rodrigues Castelhano. Do mesmo modo mais pagou 6 000 rs. pela execução de duas sanefas destinadas às portas da capela-mor. Dois móveis de madeira, do estilo português setecentista, de merecimento artístico, subsistem no presbitério: Credência, dourada e esculpida, com pernas de balança e pés de garra, da época de D. João V, e Cadeira de Prelado, lavrada em nogueira e de espaldar, fundo e costas de sola presos por pregos, brochas e pingentes de metal amarelo: hastes torneadas e pés discoides. Época de transição D. Pedro II – D. João V.                                                                                   
Sacristia
Espaçosa sala de planta rectangular, coeva do templo, tem tecto de meio canhão caiado de branco, e longo paramenteiro de madeira vulgar, já de setecentos, disposto em oito tramos almofadados e sobrepujado por corpo retabular de pilastras terminadas em cornijamento ornamental de fogaréus e pináculos envieirados. Este respaldo foi, de igual modo, subsidiado pelo mesmo reitor nas empreitadas de 1757 e executado pelo mestre marceneiro João Pedro. Importou em 50 400 rs. Em ediculas envidraçadas expõem-se algumas relíquias de santos, a saber: bustos de madeira estofada, de Santa Úrsula  e Santa Vitória, e na representação de braços dourados, os mártires S. Lourenço, S. Máximo, S. Vicente e S. Joaquim (séc. XVII). Numa dependência da igreja conservam-se, no ano de 1758, mais dois santuários contendo relíquias inumeráveis de personagens reais ou lendárias do hagiológico cristão.            
Várias pinturas emolduradas, de óleo sobre tela, tábua, cobre e vidro, dos sécs. XVII-XVIII (algumas provenientes da cripta do patriarca) e na maioria de anónima execução popular, decoram as paredes e os cachaços do arcaz. Sua representação: A Virgem e o Menino Jesus, Santo António (?), Arcanjo S. Rafael, S. Francisco recebendo os estigmas, Santo Agostinho, e três da iconografia do fundador: O Santo conduzindo, aos ombros, uma criança enferma, S. João de Deus carregando achas para o hospital, auxiliado por dois arcanjos e S. João de Deus lavando os pés a um peregrino. Este ex-voto, provavelmente de factura local, ingénuo e prejudicado por camadas excessivas de vernizes, parece de intenção iconográfica, pois no casario desenhado, como fundo da cena, vê-se a arcaria de tipo manuelino, do Hospital de Santo André, que foi administrado pelos irmãos da Ordem Religiosa.                               
No mesmo recinto existem ainda, dignos de menção, três peças de mármore regional, branco e preto: pequena pia de água benta, em forma de vieira estilizada suportada por mão esculpida; mesa de cálices, com tabuleiro romboidal, peanha palmar, concheada, do estilo rococó, e lavabo crucífero, composto por duas carrancas antropomórficas, e frontão triangular, ladeado, nos acrotérios, de esferas: está cronografado de 1646.                                                                                                                     
Poucas alfaias de prata, de merecimento artístico possui a sede de freguesia, mas o núcleo pertencente à Confraria do Santíssimo Sacramento, para a nova Matriz transferida na década de 1850, é valioso e opulento, embora não conserve já as três célebres lâmpadas de prata repuxada, da época de D. João V e de desmesurado tamanho, como outras não havia na região e que a cobiça de Junot anexou em 1808. Do primeiro conjunto anotaram-se as seguintes peças: dois cálices, de prata dourada, base romboidal e ornatos esculpidos, relevados, na falsa copa, de intenção floral. São sensivelmente iguais e do estilo D. João V. Medem, de alt., 27 cm. Píxide, de tipo semelhante na decoração, circular e da mesma época. C.ª de 1750. Alt. 32 cm.

Relicário de S. João de Deus
Curiosa peça de prata dourada, do estilo barroco de transição, assente em base romboidal de devolutas palmares: resplendor contendo lúnula ovulada, com fragmento de osso (?). Inscrição de letra romana rebordando a peanha:                               

                                  PAR.te DO D.Sto + S.JO.ão DE DS + MONTEMOR +                              
         NOVO + DADA PELO SR. SIMÃO DA S.ª LEBVR.º
 No  ano  de  1759, o mestre de carpintaria João Gonçalves, assentou o estrado do pavimento  da  igreja,  de tabuado de choupo e de pinho da terra (alguns chapões vieram de Évora),  havendo  o  cuidado  de marcar as sepulturas principais com tampos móveis, presos  por  argolões.  A  mesma  disposição  se não respeitou ulteriormente, como se vê pelo recobrimento  integral  do  chão.  Apenas  se  identificam as campas epigrafadas do subcoro,  todas de mármore, na sua maioria tão gastas pela acção do tempo que a leitura das   lápidas  se  torna  impossível.     
 Dimensões da igreja: nave – comp. 19,10 x larg. 6,70 m; cruzeiro – larg. 8,30 x comp. 6,95 m; capela-mor – larg. 6,00 x fundo 3,50 m.
 A antiga Igreja de S. João de Deus, actual Matriz de Montemor-o-Novo e seus anexos, encontram-se separados do edifício conventual, hoje Biblioteca Municipal Almeida Faria, após as devidas adaptações funcionais.
Conforme referido mais acima, em 1950 o Padre António Lavajo Simões mandou fazer avultadas obras na igreja. Setenta anos depois, iniciaram-se novas obras, desta vez, sob a responsabilidade do Cónego José Morais.

Augusto Mesquita
 In: Folha de Montemor - Julho 2020

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