Na longa caminhada da
vida, entrecortada por rosas e espinhos, há episódios e momentos que nos deixam
inquietos, não por que tenham um cariz positivo ou negativo mas por serem um
perene marco nas nossas vidas.
A história que hoje
aqui vou contar tem o seu epílogo na já longínqua década de setenta, do século
passado e, pelo seu conteúdo, tem o condão de, ainda hoje, me encantar, apesar
da distância no espaço e no tempo.
Como a maior parte dos
meus amigos sabe, aos vinte anos, «assentei praça» como militar na Força Aérea
e, nessa condição, a disponibilidade
para estar pronto para o serviço não tem limites.
Em dado momento, foi-me
proposto que, em horário pós-laboral, me disponibilizasse a ensinar o «A, E, I.
O, U» aos funcionários civis guineenses e aos militares do serviço militar
obrigatório que não tivessem frequentado a escola ou, se o tivessem feito, não
soubessem ler ou escrever.
Ao tempo era um jovem
no dealbar da Carreira Militar!
A disponibilidade de
servir, inerente à condição militar, a minha vontade e o meu pleno sentido de serviço comunitário,
foram o pretexto para aceitar tal missão, acrescendo ainda mais uma razão - a
premência da ocupação dos tempos livres.
Não tenho a veleidade
de me assumir como um suprassumo de conhecimentos na área escolar mas a vontade
ultrapassa todas as dificuldades para o desempenho de qualquer função. E esta
não fugia à regra.
Nomeado no Diário do
Governo como professor das Aulas Regimentais, com maior ou menor dificuldade lá
fui ministrando as letras e os números a um diminuto número de alunos ávidos de
saber ler e escrever.
Na apresentação pedi
aos alunos que me dissessem a razão ou razões da evidência ali consubstanciada
de não terem frequentado a escola. As causas foram todas ligadas ao facto das
famílias serem desestruturadas e sofrerem de carências económicas e sociais.
Não se esqueçam que estávamos nos anos setenta do século passado quando, ainda,
havia muita iliteracia!
Os alunos eram poucos.
Contavam-se com os dedos de uma das mãos!
Mais pela vontade deles
do que pelas minhas competências, as aulas foram proveitosas e, todos eles, com
maior ou menor dificuldade, ficaram a saber ler e escrever.
Fui criando com eles,
por razões óbvias, alguma empatia e amizade e o facto de sermos militares não
foi obstáculo a que criássemos esses laços de afetividade, nunca descurando o
respeito mútuo que é apanágio da disciplina militar.
Desta minha função
militar e humana quero deixar, nestas simples linhas, a relevância de uma
atitude, de um dos meus soldados/alunos a quem ensinei a ler e escrever - um
abraço efusivo e profundo que ainda, hoje, perdura!
Relembro um daqueles
rapazes, da minha idade, na hora da despedida, quando terminava o tempo de
serviço e regressava à sua Ilha no Atlântico, em lágrimas copiosas no rosto, me
ter dito que lhe abrira o seu espírito para um novo mundo!
Ele tinha razão em
sentir-se outro homem! Era verdade porque, no dia da apresentação nas aulas regimentais,
ele me dissera que não queria mais dar a ler as cartas que a namorada e a
família lhe escreviam, nem pedir a outros que lhas escrevessem!
Aquele abraço ainda
hoje o sinto e parece que oiço as lágrimas a rolar no chão, numa música de
embalar o meu coração!
Até um dia, Soldado
nunca esquecido!
Ota (Alenquer), 03 de
Julho de 2020
Martinho Roma da Vila
1 comentário:
Os grandes homens vêem-se pelos atos que praticam ao longo da vida. O Matinho sempre foi um grande homem
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