quarta-feira, 1 de julho de 2020

NOVO "APONTAMENTO" DO MARTINHO

                                                BASTA SABER LER
Na longa caminhada da vida, entrecortada por rosas e espinhos, há episódios e momentos que nos deixam inquietos, não por que tenham um cariz positivo ou negativo mas por serem um perene marco nas nossas vidas.
A história que hoje aqui vou contar tem o seu epílogo na já longínqua década de setenta, do século passado e, pelo seu conteúdo, tem o condão de, ainda hoje, me encantar, apesar da distância no espaço e no tempo.
Como a maior parte dos meus amigos sabe, aos vinte anos, «assentei praça» como militar na Força Aérea e, nessa condição,  a disponibilidade para estar pronto para o serviço não tem limites.
Em dado momento, foi-me proposto que, em horário pós-laboral, me disponibilizasse a ensinar o «A, E, I. O, U» aos funcionários civis guineenses e aos militares do serviço militar obrigatório que não tivessem frequentado a escola ou, se o tivessem feito, não soubessem ler ou escrever.
Ao tempo era um jovem no dealbar da Carreira Militar!
A disponibilidade de servir, inerente à condição militar, a minha vontade  e o meu pleno sentido de serviço comunitário, foram o pretexto para aceitar tal missão, acrescendo ainda mais uma razão - a premência  da ocupação dos tempos livres.
Não tenho a veleidade de me assumir como um suprassumo de conhecimentos na área escolar mas a vontade ultrapassa todas as dificuldades para o desempenho de qualquer função. E esta não fugia à regra.
Nomeado no Diário do Governo como professor das Aulas Regimentais, com maior ou menor dificuldade lá fui ministrando as letras e os números a um diminuto número de alunos ávidos de saber ler e escrever.
Na apresentação pedi aos alunos que me dissessem a razão ou razões da evidência ali consubstanciada de não terem frequentado a escola. As causas foram todas ligadas ao facto das famílias serem desestruturadas e sofrerem de carências económicas e sociais. Não se esqueçam que estávamos nos anos setenta do século passado quando, ainda, havia muita iliteracia!
Os alunos eram poucos. Contavam-se com os dedos de uma das mãos!
Mais pela vontade deles do que pelas minhas competências, as aulas foram proveitosas e, todos eles, com maior ou menor dificuldade, ficaram a saber ler e escrever.
Fui criando com eles, por razões óbvias, alguma empatia e amizade e o facto de sermos militares não foi obstáculo a que criássemos esses laços de afetividade, nunca descurando o respeito mútuo que é apanágio da disciplina militar.
Desta minha função militar e humana quero deixar, nestas simples linhas, a relevância de uma atitude, de um dos meus soldados/alunos a quem ensinei a ler e escrever - um abraço efusivo e profundo que ainda, hoje, perdura!
Relembro um daqueles rapazes, da minha idade, na hora da despedida, quando terminava o tempo de serviço e regressava à sua Ilha no Atlântico, em lágrimas copiosas no rosto, me ter dito que lhe abrira o seu espírito para um novo mundo!
Ele tinha razão em sentir-se outro homem! Era verdade porque, no dia da apresentação nas aulas regimentais, ele me dissera que não queria mais dar a ler as cartas que a namorada e a família lhe escreviam, nem pedir a outros que lhas escrevessem!
Aquele abraço ainda hoje o sinto e parece que oiço as lágrimas a rolar no chão, numa música de embalar o meu coração!
Até um dia, Soldado nunca esquecido!

Ota (Alenquer), 03 de Julho de 2020
Martinho Roma da Vila

1 comentário:

Anónimo disse...

Os grandes homens vêem-se pelos atos que praticam ao longo da vida. O Matinho sempre foi um grande homem