Como os nossos leitores mais assíduos já se aperceberam, é
nosso costume recolher os testemunhos dos mais velhos e revisitar os lugares da
antiga vila e do concelho. De vez em quando, fazemos umas escapadinhas, ao
encontro de outras realidades e de outras gentes, uma espécie de “vá para fora
cá dentro”. Desta feita produto da das circunstâncias, socorremo-nos
essencialmente da internet e de alguns livros que nos sevem de companhia e que
são, também eles, fiéis depositários de memórias. Um café feito em casa veio
atenuar as saudades que sentimos de uma cremosa bica tomada calmamente à mesa
de um dos cafés da nossa cidade.
Enfim! Esperemos que o chamado “novo normal” chegue e se
instale definitivamente. Entretanto, vamos tomando consciência, cada vez mais,
que nas alturas criticas que damos valor às pequenas coisas da vida e meditamos
mais demoradamente sobre elas. É o caso de uma simples bica.
A popular bebida entrou, já há muito tempo nos hábitos dos
portugueses. Uns preferem-na curta (uma italiana), outros querem-na cheia, e há
mesmo quem peça para lhe juntar um pouco de leite (um pingado). Há-os ainda que
não dispensam um “cheirinho” de whisky ou aguardente. Dizem uns que favorece a
inspiração, que dá energia e faz render o trabalho. Para muitos é uma optima
razão para um encontro com amigos. Os necessitados de sono afirmam que lhes
provoca espertina.
Se, especialmente em Lisboa e no sul do país, esta
modalidade de café recebe o nome de bica, os portuenses costumam pedir um
“cimbalino”, designação proveniente da marca italiana “Cimbali”. Cada terra com
seu uso. Para evitar confusões, o melhor é mesmo pedir um café.
São diferentes as expressões que explicam a origem do termo
“bica”. Uns defendem que mesmo ainda antes de existirem as máquinas expresso, o
café era passado por sacos e vertido lentamente através de uma pequena torneira
(bica) para cafeteiras que iam à mesa do freguês. Segundo os defensores deste
argumento, a reclamação de alguns clientes, queixando-se que o café arrefecia e
perdia o seu intenso aroma, fez com que se experimentasse deitar o café
directamente da torneirinha (bica) para as chávenas. A experiência surtiu
efeito e daí surgiu o termo “bica”. Corre por aí outra versão segundo a qual,
na altura em que o café expresso apareceu como grande novidade, muitos consumidores,
talvez por falta de hábito, reagiram mal ao sabor intenso da bebida. Perante a
rejeição popular, arranjou-se como solução exibir um cartaz com a frase «Beba
Isto Com Açúcar» - As letras iniciais de cada uma destas palavras formam a
sigla BICA. Se a explicação do termo não merece consenso, parece haver alguma
convergência quanto ao local onde tudo isto se passou e que terá sido na
Brasileira do Chiado.
Este emblemático estabelecimento de Lisboa, o primeiro a
vender a bica, abriu portas ao público em Novembro de 1905, na Rua Garret, num
espaço que terá sido, segundo apurámos, uma antiga loja de camisas. O seu
fundador, Adriano Soares Teles do Vale, emigrou ainda jovem ara o Brasil, onde
viveu vários anos e onde enriqueceu com o negócio do café. Ali deixou contactos
que facilitaram a importação do “genuíno café brasileiro”. Além da cidade de
Lisboa, o negociante espalhou uma rede de pontos de venda de café por todo o
país, nomeadamente Pelo Porto, Braga, Coimbra, Aveiro… Estes pontos de venda
ficaram conhecidos como “as Brasileiras”. Para promover inicialmente o produto,
diz-se que Adriano Telles oferecia uma xícara de café a quem comprasse um
quilograma de café de Minas Gerais.
El Lisboa, o negócio prosperou de tal maneira, que, passados
poucos anos o empresário sentiu necessidade de abrir uma Sala de Café, que se
tornaria um dos pontos de encontro mais procurados pela elite da capital. Ali
se reunião médicos, advogados, jornalistas, escritores e outros artistas.
Naquele espaço de tertúlia fervilhavam algumas idéias revolucionárias.
Além de ter olho para o negócio, o fundador da Brasileira
era um homem que se interessava por cultura, em particular pela música e pela
pintura. Foi ele que financiou a compra de instrumentos da Banda de Alvarenga,
sua terra natal.
A partir de determinada altura a Brasileira do Chiado passou a ser espaço de
exposição de pintura, incluindoos arrojados quadros dos autores modernistas da
época. Eram frequentadores assíduos da casa, entre muitos outros, Fernando
Pessoa e Almada Negreiros.
E, estimado leitor, chegámos ao tal pretexto que anunciámos
logo no início desta crónica/memória. Trata-se de uma evocação literária.
Fez no passado dia 15 de Junho cinquena anos que morreu José
de Almada Negreiros, uma figura impar no panorama da cultura portuguesa, alguém
a quem se pode chamar, com toda a propriedade, um verdadeiro artista.
Há quem afirma que não se conseguem fazer várias coisas bem
feitas ao mesmo tempo ou, como diz o povo «quem muitos burros toca, algum fica
para trás. No entanto Almada destrói completamente essa idéia. Ele foi um
verdadeiro artista multidisciplinar, tendo-se distinguido nas artes plásticas
(desenho, pintura, etc.), no campo da escrita (poesia, ensaio, dramatologia,
etc.), e até no bailado, entre outras áreas. Almada Negreiros foi uma figura
central do movimento modernista em Portugal, nomeadamente da tendência
futurista. Em 1915, juntamente com Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro, e
outros escritores esteve na génese da polémica revista literária Orpheu.
Naquela altura, a revista provocou enorme escândalo no
cinzentismo cultural do país e, como consequência, sofreu fortes criticas. Um
dos ataques mais contundentes foi o de Júlio Dantas, escritor e autor da famosa
Ceia dos Cardeais. Dantas acusou de loucos os poetas do Oprheu, o que fez
desencadear uma não menos acida e provocatória resposta de Almada Negreiros,
que ficou conhecida por Manifesto Anti-Dantas. A revista conseguiria, com
dificuldades, a publicação de mais dois números.
Desde Outubro do ano passado que andávamos a preparar, com
alunos da Universidade Sénior, a apresentação de uma peça inspirada na obra de
Gil Vicente e Almada Negreiros. A estreia estava prevista para este mês de
Junho, como forma de encerrar o ano lectivo e assinalar os cinquenta anos da
morte do dramaturgo contemporâneo. Dada a impossibilidade de o fazermos, não
quisemos deixar de evocar, embora de forma simples e breve, o grande Mestre.
E porque estamos em período de crise pandémica, universal,
com tudo ou quase tudo a andar à nora, não resistimos a transcrever mais alguns
versos de Almada Negreiros, que nos õem a pensar nas virtudes e nas fragilidades
do Homem e da nossa Civilização:
“Tu que te dizes Homem!
……………
Tu, que inventaste as
Ciências e as Filosofias
As Politicas, as Artes
e as Leis,
Tu, que aperfeiçoas
sabiamente a arte de matar
…………….
Tu, que tens a mania
das Invenções e das Descobertas
E que nunca
descobriste que eras bruto,
E que nunca inventaste
a maneira de o não seres.
Tu, consegues ser cada
vez mais besta
E a este progresso
chamas-lhe Civilização”
E pronto. Assim nos despedimos até ao próximo mês
Vitor Guita
In Montemorense – Junho 2020
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