EDUARDO LUCIANO
Maggie, a gata
Como qualquer “artista” que preze, há sempre um momento em que
convidamos para o nosso palco alguém mais jovem e que se inicia na difícil lide
das artes.
Hã uns anos
convidei três dos meus filhos a lerem uma crónica em jeito de recado (o meu pai
manda dizer) e foi das coisas mais bonitas que fiz.
Hoje já não estão
para aí virados, mas tenho uma gata com dois meses que pela atitude
independente, pelas garras afiadas e por se estar nas tintas para opiniões
correntes, merece que este palco que lhe vou dar.
Chama-se Maggie e
manda dizer que não percebe muito bem este mundo onde lhe calhou viver, onde as
pessoas não se tocam porque têm medo dos seus iguais mas insistem em que vá
para o seu colo para compensações afectivas.
Não entende a
raiva que vai por aí contra os humanos mais jovens, nem o piedoso abandono dos
mais idosos. Até me perguntou se aquela coisa do meio e da virtude se aplicava
à idade em que as pernas ainda mexem mas os sofás têm um íman escondido.
Questionou-me sobre o facto
de cada vez mais gente não se importar de hipotecar a liberdade em nome da
segurança e de haver humanos que trabalham que se desunham por um prato de
“Whiskas”, são transportados em camionetas, comboios e barcos como se fossem
gado vivo a caminho do matador e ainda levam com o estigma de andar a
transmitir doenças.
Para a Maggie
tudo isto é muito estranho e com pouco sentido e fica espantada a olhar para a
televisão onde gente que não distingue uma gata dum urso se atreve a emitir
opiniões acerca de tudo e quase nada.
Perguntou-me a
gata recém-chegada se quando as pessoas se juntam para exigir direitos a
transmissão viral é mais perigosa do que quando se juntam para obedientemente
irem trabalhar. Já lhe expliquei que os humanos que são proprietários dos meios
de produção têm uma noção arrevesada de direitos e liberdades e acham que uma
coisa é a liberdade de irem produzir outra bem diferente a liberdade
protestarem contra as condições em que trabalham ou o salário que recebem.
Já tive o cuidado
de lhe explicar que veio ao mundo num tempo estranho, com uma pandemia
instalada, mas ela não entende o que é que isso tem a ver com a desigualdade
que se agrava nestes tempos.
Explica-me lá que
agitação é essa em torno de uma Festa que acontece lá para Setembro e que de
repente parece incomodar muita gente.
Eu explico
Maggie. É a Festa do Avante, que se realiza desde 1976 na primeira semana de
Setembro e que é assim uma espécie de cidade do futuro que desejamos. É
organizada pelos comunistas e admirada por todos os que sem preconceitos a
visitam e mais ainda pelos que se atrevem a participar na sua construção para
perceber como é possível.
Não sabemos se em
Setembro será possível realizá-la, mas pelo sim pelo não já está a ser
construída.
Espera, disse-me
a minha gata arisca, se é só em Setembro porquê esta agitação toda? Porque têm
medo da pandemia?
Não Maggie. Têm
medo que o espectro, de que falava o Marx no Manifesto, se abata sobre o mundo.
Levas-me à Festa?
Não. Mas trago-te um Cohiba para fumares sentada no quintal.
Até para a semana
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