A lição de Eneias e a exaustão
pela COVID19
Ensinou-me um dos melhores académicos portugueses especialista em
Estudos Clássicos, Frederico Lourenço, que a lição da vida de Eneias, o herói
da epopeia latina Eneida, é que o importante para levarmos uma vida sábia não é
termos o que queremos, mas querermos o que temos. Está bom de ver que só um
herói consegue viver tranquilamente de acordo com tal princípio, até porque
tudo à nossa volta parece empurrar-nos para desejarmos até o impossível. Além
de que estes tempos mais próximos são e serão tudo menos tranquilos. Se a lição
de Eneias nos pode fazer parecer uns conformadinhos sem sal, viver de acordo
com a pressão contemporânea vai certamente continuar a transformar-nos em
stressadinhos com muitas frustrações.
Toda a conversa
sobre os jovens e a sua supostamente exclusividade de inconsciência no
desconfinar é bem prova de que passamos a vida a arranjar desculpas. Ou, outro
exemplo, as reacções ao estilo “guerras do alecrim e da mangerona”, com um
pitada de Eça, para pôr na capital de um país a fonte de todos os males. Se não
fosse um assunto sério, até dava vontade de experimentar uma cerca a Lisboa por
15 dias e ver “como elas mordiam”…
Isto parte da
reacção à constante procura da culpa. Mesmo que seja só para disfarçar que,
afinal, ela vai ter mesmo de morrer solteira, se não quisermos ter lá parte. E
tem também alguma coisa a ver com as vozes e os ruídos concorrerem entre si
para que quem tem de decidir decida. Uma consequência da Democracia, o mais
trabalhoso dos sistemas de governo experimentado, o que mais nos faz termos o
que queremos, mas também nos responsabiliza para cuidarmos do que temos.
Quando leio e
oiço o que se diz de tanto mal sobre as possibilidades de algumas das práticas
a que a pandemia nos obrigou, quase me esqueço do quão mal se dizia do que e
como era antes. É um bom exercício, e não apenas de um nem sempre bem entendido
conformismo.
Resumindo, usamos
mal o que temos ao querermos logo o que não podemos ter. Vem um vírus e não
somos capazes de dizer que a melhor alternativa ao castigo é sermos habilidosos
em dar a volta à situação. Claro que cumprindo regras que custam quase tanto
como castigos, mas a que nos habituaremos se, em vez do ruído em que muitos se
empenham, ouvirmos as vozes de quem tenha pelo menos um objectivo: que se isto
nos correr bem a nós, também lhes correrá bem a eles. É preciso é que corra
mesmo bem! Não é fácil, nem está garantido, porque ainda assim os imponderáveis
são muitos. De qualquer modo, em caso de vida ou morte, apetece-me mais
obedecer em Democracia a quem represente instituições, do que armar-me em
contestatária do sistema. Conseguiria dizer das instituições o que Frederico
Lourenço dizia do herói de Virgílio, há dias, numa rede social: “Muitas outras
coisas me fazem gostar de Eneias – pelo menos nos primeiros cantos do poema.
Gosto da falta de egoísmo dele. Gosto da preocupação com o pai e com o filho.
Gosto do modo como finge estar feliz perante os outros refugiados troianos,
para não os contaminar com a sua infelicidade. Gosto da maneira como Eneias consegue
ser (como se diz em inglês) «selfless» em vez de «selfish». Consigo
solidarizar-me com alguém que vive em prol de algo que ele considera estar
acima dele. O grande problema, claro, é a natureza desse «algo».”
Até para a
semana.
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