O
regresso a alguma aparente normalidade traz consigo o receio de que todo este
esforço tenha sido em vão. A realidade agora é outra, muito diferente da que
conhecíamos.
Saímos
para a rua, mas as máscaras que nos protegem deixam-nos irreconhecíveis. Acenamos,
mas não sabemos quem passa por nós. Os nossos sorrisos e expressões estão
ocultos e assim vão continuar durante algum tempo, para nossa proteção.
O tempo passado
no recato do lar fez crescer a barba, o que, dizem os entendidos, pode ser um
foco de contágio. O cabelo, como se diz na gíria, “já quase dá nêsperas” Fiz a
marcação no barbeiro, que agora não tem mãos a medir para despachar o serviço.
Só há vaga para daqui a duas semanas. Até lá, os micróbios vão-se acumulando,
numa aparência que faz lembrar um qualquer D. Quixote.
As filas no
supermercado ainda continuam iguais, com o necessário compasso de espera para
poder encher o frigorífico. Dizia um velhote à minha frente:
- Nunca nos dias da minha vida pensei passar por isto!
Ouvimos as
histórias e os boatos, em muitos casos infundados;
- O meu vizinho já foi para o hospital! Veio de Lisboa e trouxe
o "bicho", de certeza!
Responde a
senhora da caixa:
- Ontem, de madrugada, chegou à rua um casal de Lisboa. Nunca os
tinha visto por cá! Em vez de estarem sossegados, vêm apoquentar a gente!
Fechem o Alentejo!
A verdade é que
durante estes meses, fomos vendo umas caras estranhas nas pacatas vilas e
aldeias alentejanas. No meio de tanta conversa assustadora, vasculhamos as
prateleiras, por entre os olhares desconfiados e anónimos, à procura da
lixívia, das luvas e do álcool-gel, que muitas vezes estão esgotados. No
início, as compras foram compulsivas. Havia um receio, talvez infundado, de que
os bens fossem faltar. Hoje não sabemos o que fazer a tantas latas de atum e de
feijão frade. Vamos ter que usar a imaginação culinária: sandes de atum, arroz
com atum, atum com batata cozida, etc.
Até a
programada ida ao centro comercial, outrora entediante e espinhosa, ganha
contornos de verdadeira lua-de-mel
Mas o tempo de
confinamento foi também um tempo de descobertas. Aprendemos os segredos da
bimby e demos largas a imaginação.
Foram muitos os
quilos ganhos e os vídeos de culinária partilhados no facebook. Ficamos a
descobrir que os nossos amigos e amigas são verdadeiros “masterchefs” , por
entre os bolinhos de aveia, pavlovas e o borrego assado com alecrim. Eu,
pessoalmente, e por insistência do rebento, não consegui passar do pudim
“Mandarim” e do bolo de iogurte, apesar de em relação ao último as fornadas
saírem quase sempre queimadas. Se isto durasse mais uns meses, seguramente que
a aprendizagem iria resultar.
No lar, foram
muitas as horas a construir castelos com almofadas e a desenhar naves espaciais
e super-heróis coloridos, para entreter a criança. O tik tok também deu uma
ajuda, para mandarmos vídeos divertidos para as avós. Quando a imaginação
começou a faltar, chegou a notícia de que o jardim de infância ia finalmente
abrir! As saudades já são muitas.
Há quase três
meses que o Francisco não vê crianças. As brincadeiras são só com os adultos o
que, quer queiramos quer não, não é a mesma coisa. Seguramente que os
psicólogos explicarão isso melhor que ninguém. Também as educadoras sentem
saudades dessa rotina, como eu sinto de as ver de manhã, a beber o café, antes
de iniciarem a jornada, numa alegre cavaqueira que parece agora tão distante.
Uma escola sem crianças não faz sentido. Subitamente, passámos a ter saudades
de coisas que eram antes tão normais e que faziam parte do nosso quotidiano.
Este foi um
tempo de aprendizagem, para darmos valor ao que realmente importa e apreciar
cada momento de uma vida que nos foi em certo sentido roubada, temporariamente.
Talvez esta tenha sido uma lição para que a humanidade se torne mais solidária,
no futuro!
Tiago Salgueiro
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