O tempo apresentava-se instável. Ora sol, ora nuvens negras
a ameaçarem chuva. Enquanto ouvíamos a canção I have a Dream, dos Abba, chegava.nos da Suécia a boa nova de que
tínhamos um muito desejado neto, Sebastião foi o nome escolhido pela mãe.
A contrastar com os risos e a felicidade cá de csa, os
jornais, rádios e televisões nacionais noticiavam o que terá sido o pesadelo
duma menina de nove anos, vítima de um crime hediondo perpetrado, presume-se,
pelo próprio pai. Os media portugueses davam ainda a conhecer os últimos dados
do Covid 19, as já costumadas tricas politicas e as alterações profundas
introduzidas nas celebrações do 13 de Maio. Mereceu também particular destaque
o Dia do Enfermeiro. Este dia, comemorado em todo o mundo pretende homenagear
todos os enfermeiros, relembrando o seu inestimável papel na prestação dos
cuidados de saúde.
No presente ano, o dia teve um sabor muito particular para a
classe, já que esta viu o seu trabalho reconhecido universalmente. Enfermeiros,
médicos e outros profissionais que estiveram na linha da frente no combate à
pandemia têm sobejos motivos para se encherem de orgulho. Não faltaram vozes a elevá-los
à categoria de heróis, a aclamá-los nas ruas, nas varandas, a dedicar-lhes
cânticos de louvor.
O dia 12 de Maio coincide com a data de nascimento da
britânica Florence Nightingal, a “Dama da Candeia”, também conhecida como a
fundadora da enfermagem moderna.
Nightingale nasceu há duzentos anos, a 12 de Maio de 1820,
numa altura em que os pais viviam em Itália. Oriunda de uma família rica,
recebeu uma educação esmerada. As visitas que, desde muito nova, fazia a
pessoas doentes influenciaram a decisão de se tornar enfermeira, apesar do
desacordo familiar.
As primeiras aprendizagens a sério na enfermagem foram
feitas em contexto religioso, tendo chefiado uma equipa de enfermeiras
voluntárias no auxílio aos soldados Britânicos feridos durante a Guerra da
Crimeia (1853-1856). As idéias da enfermeira britânica materializaram-se, entre
outras coisas, na aquisição do número adequado de camas, na criação de
refeitórios, de lavandarias, de espaços de convívio para os doentes. Uma
revolução! De noite, para vigiar os soldados doentes, as enfermeiras efectuavam
rondas à luz das candeias.
Nightingale contrariava, assim, o velho preconceito de
participação das mulheres no Exercito e na enfermagem profissional.
Foi no ano de 1860 que Florence Nightigale fundou uma Escola
de Enfermagem no Hospital de Saint Thomas, onde se ensinavam práticas de
combate às infecções, que, ainda hoje estão na ordem do dia, como a lavagem das
mãos, a triagem de doentes, dando prioridade às situações mais graves… De
acordo com a situação epidemiológico que se tinha há 160 anos, boa parte da
recuperação dos pacientes passava pelo arejamento dos espaços, pela higiene,
pela dieta e repouso.
A partir de então, quem se dedicava à enfermagem ganhava
visibilidade, deixando de ser visto apenas como alguém que se limita a dar o
remédio e aplicar o penso. Segundo apurámos, houve quem depreciasse o trabalho
da enfermeira britânica, acusando-a de querer fazer da enfermagem uma profissão
feminina. Ao fim e ao cabo, o que importa é que muito do que a enfermeira
idealizou contínua actual.
Mas se aquela que é considerada a fundadora da Enfermagem
Moderna é vista como um símbolo ara a classe dos enfermeiros, não podemos
ignorar que é montemorense o patrono dos hospitais doentes e enfermeiros.
Nasceu ali, na Rua Verde (1495). S. João de Deus, de seu nome João Cidade,
ocupa um lugar singular, inquestionável, na assistência aos pobres e aos
doentes. Foi também ele, em muitos aspectos, um pioneiro. O hospital por ele
fundado em Granada em 1538, e a criação da Ordem dos Irmãos Hospitaleiros são
parte da herança por ele deixada a favor dos enfermos e dos mais necessitados.
Pastor, soldado, dado como louco, foi através de esmolas que chegou à criação
da obra a que dedicou grande parte da sua vida e que hoje tem projecção
mundial. Conhecedor da forma como eram tratados os que sofriam de doença
mental, foi a estes que dedicou grande parte da sua atenção. O hospital de
Granada viria também a desempenhar papel importante no tratamento de doenças
consideradas contagiosas e incuráveis. A lepra era naquela época, e tem sido ao
longo dos tempos uma doença temida 4xactamente pela sua contagiosidade e
incurabilidade.
A certa altura, demos connosco a pensar que a COVID-19 é uma
espécie de lepra do nosso tempo. A clausura em que temos vivido, o clima de
insegurança e até de medo que nos assola, o afastamento físico a que temos
estado condenados, fizeram despoletar em nós uma série de memórias.
Em particular, a relação de afastamento, a profusão de
máscaras e de barreiras acrílicas fizeram-nos pensar naquela terrível praga,
salvaguardando, claro está, as devidas diferenças. O tema da lepra foi abordado
por pintores, cineastas, escritores, nomeadamente pelo professor Carlos Cebola,
que fez incluir num dos seus magníficos textos dramáticos um miúdo leproso.
Chamou-lhe Paco.
Lembrámo-nos de que, fez aproximadamente cinquenta anos,
pisamos o palco do Cine-teatro Curvo Semedo para integrar um grupo de amadores
que representou a peça João Cidade, da autoria do professor e encenada por
Domingos dos Santos. O espectáculo, oferecido pela Camara da altura a toda a
população, teve lugar no dia 8 de Março de 1970, tendo sido integrado nas
comemorações do dia de S. João de Deus e servido igualmente para assinalar o 1º
Feriado Municipal.
Estão ainda bem frescas algumas das falas da peça,
nomeadamente o último diálogo dos dois guardas que faziam a ronda pelas ruas de
Granada e que ficaram indecisos, aterrorizados, quando avistaram um pequeno
mendigo que se dizia estar leproso:
Guarda A – Nem mais um
passo! Pára! Pára! É uma ordem! Aquele miúdo…aquele é o miúdo que toda a gente
conhece em Granada, e de quem toda a gente foge!
Guarda B – O da lepra?
O pequeno leproso?
Guarda A – Esse mesmo.
Agora sou eu que te digo: nem mais um passo!
Guarda B – Vamo-nos embora!
Vamos! Embora daqui! Vamos!
A cena final termina com a entrada de João Cidade em cena,
com o hábito vestido. Figura impressionantemente corajosa e serena! Com a ajuda
de outros dois mendigos toma o pequeno leproso nos braços e, perante o olhar
atónito dos presentes, cruza toda a cena.
A peça que tinha sido estreada em 1964, no Cine-teatro Curvo
Semedo, com encenação do autor e representada pelos amadores da Pedrista, viria
a ter mais algumas representações.
Em Abril de 1995, integrada no V centenário do nascimento de
S. João de Deus, a peça João Cidade voltou ao palco do mesmo Cine-teatro, desta
vez interpretada pelos ovéns actores da Escola Secundária de Montemor-o-Novo,
que tivemos o prazer de dirigir.
Pois é, estimado leitor, as memórias não pararam de
contagiar-nos e de contagiar-se umas às outras, cada vez mais, de tal modo que
ainda, com o tema da lepra como pano de fundo, passámos do teatro ao cinema.
Recuámos até 1960 ou 1961, altura em que, no velho Rádio
Cine, foi exibido o filme Bem-Hur, considerado um dos melhores da história do
cinema. Não nos sai da lembrança a grandiosidade dos cenários, o magnifico
elenco dos actores, os milhares de figurantes, a cena da libertação dos
escravos condenados às galés, a famosa sequência fílmica da corrida de bigas e
o emocionante duelo entre Messala e Bem-Hur.
Muitos dos estimados leitores lembrar-se-ão de que a mãe e a
irmã do épico herói foram presas pelos romanos e enviadas, depois, para o Vale
dos Leprosos. Bem-Hur consegue vê-las e
levá-las à presença de Jesus, que estava a ser julgado por Pilatos. As
duas mulheres são milagrosamente curadas com a água da chuva que caiu logo após
a crucificação.
Depois de termos recordado o famoso filme, a cadeia de
contágio das memórias parecia não ter fim, mas agora com nova mutação para uma
estirpe mais popular.
Nos livros e papéis que vasculhamos fomos encontrar uns
interessantíssimos versos escritos por José Luís Caroço, em 1965, que nos
fizeram lembrar as reacções de alívio e de júbilo, quando se tem alta do hospital.
Os versos deixam ainda transparecer a profunda gratidão manifestada a médicos,
enfermeiros e a todos aqueles que hoje e sempre, têm estado diariamente na
linha da frente.
Por razões de esaço, deixamos aqui apenas duas das estrofes
cujo mote repete quatro vezes: “Já sei que abalo no Sábado”.
José Luís Caroço tinha estado internado, num quarto isolado,
vítima das doenças das bexigas.
Escreveu, ipsis verbis,
assim:
Adeus menina Joaquina
Que é uma boa enfermeira
Digo adeus à cozinheira
E à senhora Dona
Arminda
A semana já está finda
Chegou o dia do prazo
Adeus Florindo o criado
A hora veio mas com custo
Adeus também ao Augusto
Já sei que abalo no Sábado.
Ao senhor António Balão
Também lhe digo adeus
Foi ele que me apareceu
Mostrou-me toda a atenção
Adeus senhor Conceição
Também me mostrou agrado
Deixo de estar isolado
Senhor Custódio estou contente
Vou visitar muita gente
Já sei que abalo no Sábado.
E pronto, estimado leitor. Espero que tenha esquecido, por
momentos, o confinamento.
Também nós vamos de abalada. Até à próxima e, não se
esqueça: Cuide-se!
Vitor Guita
Maio 2020
In. Montemorense – transcrição autorizada pelo Autor.
Sem comentários:
Enviar um comentário