Cláudia
Sousa Pereira
Um educar
miúdo
Hesitei entre dois assuntos
de crónica. Os dois incluíam crianças. Um é caso que aquece instintos
justiceiros que, com a mesma rapidez com que nascem, arrefecem e deixam pouco
para memória futura. O outro envolve uma profissão que acompanho e de que, felizmente,
conheço testemunhos directos ou em primeira mão. Decido-me por este, sem nunca
deixar de pensar no outro, o trágico e inconcebível fora das tragédias míticas.
A reabertura das creches lá se deu, a medo. E não sem ter sido
precedida do costumado rol de opiniões que qualquer um pode dar mais ou menos
publicamente. Fazemo-lo a partir da nossa perspectiva, que estendemos ao
interesse colectivo, seguindo o adágio do “não faças aos outros o que não
queres que te façam a ti”. Só que ao contrário, o que não é exactamente a mesma
coisa. É aliás o que multiplica o “achismo” e torna raro o contributo, mesmo de
quem opina de forma benevolente. É completamente diferente a disponibilidade de
quem diz “faz aos outros o que gostas que te façam a ti”. Até a mesquinha invejazinha
tem de se descalçar à porta.
Mais do que prestar atenção ao que dizem mães e pais, natural e
felizmente preocupados (e que evitam tragédias), estive mais atenta a quem está
na profissão, a quem forma os profissionais envolvidos e a quem está em
formação para o ser. Com estes últimos, alunos de cursos de educação, lido
frequentemente, embora para assuntos laterais à formação profissional mas,
parecem-me, importantes à sua formação pessoal que, imagino, ponham em acção em
contextos também profissionais.
Devo dizer que fiquei chocada com a falta de propostas, até
criativas, de quem se espera que esteja na linha da frente de pensar
alternativas aos hábitos instalados na relação de profissionais com bebés ou
miúdos bem pequenitos. Percebe-se o momento de choque que paralisa, não se
percebe que quem tem funções de direcção de serviços ou de desenho de modelos a
experimentar e, eventualmente, a implementar em futuros casos semelhantes ou
num futuro que permaneça nestas condições, prolongue essa paralisia inicial. E
dois meses depois do choque ainda se ouviam vozes de responsáveis a “ladainhar”
lamentos e demonstrando uma incapacidade gritante de se constituírem como parte
da solução e contribuírem para a “segurança social” de que muitos ainda fazem
parte.
O contacto físico é, sem dúvida, a expressão máxima do afecto. Ao
ponto mesmo de a intenção contrária – tocar sem ser para demonstrar
reciprocidade de afectos – levar muitos ao banco dos réus. E é não só
instintivo em certas personalidades, como é promovido enquanto carácter
essencial ao desenvolvimento da personalidade. São dados adquiridos numa
cultura ocidental, extrovertida que mistura muito o privado e o público,
garantindo muitas vezes que o afecto que não é recebido em privado, no seio da
família (e que pode continuar com a Covid-19 entre nós), seja compensado por
terceiros como os educadores e os amigos.
Pois chegou o momento de repensar a educação dos afectos, repensar
que o simples e profundo gesto do beijo e do abraço que, convenhamos, até está
tão banalizado que por vezes perde o seu significado íntimo para se transformar
em gesto social. Essa demonstração de afecto terá de ser substituída em meio
social, que as creches também são. À força, com choque, mas tem de ser. As
palmas, o cu-cu do sorriso que se deixa por instantes aparecer num desviar da
máscara à distância ou através da viseira, o piscar de olhos. E as palavras,
claro, que vão ter de circular melhores, com sentido e sentimento, pensadas.
Todos sabemos que são muito mais os adultos que reclamam o beijo
ao bebé do que o contrário, se bem se lembram de uma relativamente recente
polémica que metia beijos, netos e avós… Pois parece mesmo que vamos ter de nos
reinventar. Se não for quem trabalha na primeira linha da educação e quem
equilibra o fazer ciência, com a variável “cada caso é um caso” a propor a
reinvenção, então é porque estava algo muito mal até a Covid-19 vir
estragar-nos a vida. A todos. Que haja quem faça alguma coisa, no exercício da
profissão que abraçou até com um certo espírito de missão, sem ser só colocar
obstáculos – que até é o oposto dos beijinhos, abraços e encorajamentos em que
se tornaram especialistas – para resolver o que não queremos que nos aconteça.
Nem a nós, nem aos outros.
Até para a semana.
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