terça-feira, 19 de maio de 2020

CRONICA DE OPINIÃO TRANSMITIDA NA DIANA/FM

Cláudia Sousa Pereira
                                 Um educar miúdo
Hesitei entre dois assuntos de crónica. Os dois incluíam crianças. Um é caso que aquece instintos justiceiros que, com a mesma rapidez com que nascem, arrefecem e deixam pouco para memória futura. O outro envolve uma profissão que acompanho e de que, felizmente, conheço testemunhos directos ou em primeira mão. Decido-me por este, sem nunca deixar de pensar no outro, o trágico e inconcebível fora das tragédias míticas.
A reabertura das creches lá se deu, a medo. E não sem ter sido precedida do costumado rol de opiniões que qualquer um pode dar mais ou menos publicamente. Fazemo-lo a partir da nossa perspectiva, que estendemos ao interesse colectivo, seguindo o adágio do “não faças aos outros o que não queres que te façam a ti”. Só que ao contrário, o que não é exactamente a mesma coisa. É aliás o que multiplica o “achismo” e torna raro o contributo, mesmo de quem opina de forma benevolente. É completamente diferente a disponibilidade de quem diz “faz aos outros o que gostas que te façam a ti”. Até a mesquinha invejazinha tem de se descalçar à porta.
Mais do que prestar atenção ao que dizem mães e pais, natural e felizmente preocupados (e que evitam tragédias), estive mais atenta a quem está na profissão, a quem forma os profissionais envolvidos e a quem está em formação para o ser. Com estes últimos, alunos de cursos de educação, lido frequentemente, embora para assuntos laterais à formação profissional mas, parecem-me, importantes à sua formação pessoal que, imagino, ponham em acção em contextos também profissionais.
Devo dizer que fiquei chocada com a falta de propostas, até criativas, de quem se espera que esteja na linha da frente de pensar alternativas aos hábitos instalados na relação de profissionais com bebés ou miúdos bem pequenitos. Percebe-se o momento de choque que paralisa, não se percebe que quem tem funções de direcção de serviços ou de desenho de modelos a experimentar e, eventualmente, a implementar em futuros casos semelhantes ou num futuro que permaneça nestas condições, prolongue essa paralisia inicial. E dois meses depois do choque ainda se ouviam vozes de responsáveis a “ladainhar” lamentos e demonstrando uma incapacidade gritante de se constituírem como parte da solução e contribuírem para a “segurança social” de que muitos ainda fazem parte.
O contacto físico é, sem dúvida, a expressão máxima do afecto. Ao ponto mesmo de a intenção contrária – tocar sem ser para demonstrar reciprocidade de afectos – levar muitos ao banco dos réus. E é não só instintivo em certas personalidades, como é promovido enquanto carácter essencial ao desenvolvimento da personalidade. São dados adquiridos numa cultura ocidental, extrovertida que mistura muito o privado e o público, garantindo muitas vezes que o afecto que não é recebido em privado, no seio da família (e que pode continuar com a Covid-19 entre nós), seja compensado por terceiros como os educadores e os amigos.
Pois chegou o momento de repensar a educação dos afectos, repensar que o simples e profundo gesto do beijo e do abraço que, convenhamos, até está tão banalizado que por vezes perde o seu significado íntimo para se transformar em gesto social. Essa demonstração de afecto terá de ser substituída em meio social, que as creches também são. À força, com choque, mas tem de ser. As palmas, o cu-cu do sorriso que se deixa por instantes aparecer num desviar da máscara à distância ou através da viseira, o piscar de olhos. E as palavras, claro, que vão ter de circular melhores, com sentido e sentimento, pensadas.
Todos sabemos que são muito mais os adultos que reclamam o beijo ao bebé do que o contrário, se bem se lembram de uma relativamente recente polémica que metia beijos, netos e avós… Pois parece mesmo que vamos ter de nos reinventar. Se não for quem trabalha na primeira linha da educação e quem equilibra o fazer ciência, com a variável “cada caso é um caso” a propor a reinvenção, então é porque estava algo muito mal até a Covid-19 vir estragar-nos a vida. A todos. Que haja quem faça alguma coisa, no exercício da profissão que abraçou até com um certo espírito de missão, sem ser só colocar obstáculos – que até é o oposto dos beijinhos, abraços e encorajamentos em que se tornaram especialistas – para resolver o que não queremos que nos aconteça. Nem a nós, nem aos outros.
Até para a semana.




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