Os
dias são grisalhos. Chove, como há muito não se via pelo Alentejo.
Lá
dizem os mais desconfiados: Foi preciso aparecer o mal, para o tempo se
recompor!
As
ribeiras correm, por entre os olivais, desaguando lá longe, no Guadiana. O
cheiro a esteva e a rosmaninho perfuma agora os campos, com aromas que parecem
mais intensos. As ruas de Vila Viçosa estão desertas. O ruído do quotidiano
desapareceu e levou consigo os sorrisos e as gargalhadas… Talvez alguma esperança
também se tenha perdido.
Entre
o Paço dos Duques e o Castelo, são poucas as almas que se atrevem a sair.
Debaixo das laranjeiras, não se vê quase ninguém. Já não se pode, por entre
murmúrios, “cortar na casaca” de nenhum pobre diabo ou transeunte.
Estão
todos confinados e retidos no lar, pensando no futuro, que parece tão distante.
Das vidraças, apenas alguns olhares suspeitos sobre quem passa. A desconfiança
também chegou com o vírus… Só alguns incautos se atrevem a pisar a praça. As
calçadas de mármore reluzente teimam em não ser pisadas. O silêncio deixou de
ser de ouro…Porém, a água da Fonte das Bicas continua a correr. A
vida segue, apesar da inoportuna desgraça. Ao longe, a melodia do
amola-tesouras faz-nos recuar no tempo. Como se ele tivesse parado, por
instantes, num melancólico momento. O medo instalou-se, neste recanto cada vez
mais viçoso e fértil da planície. A chuva trouxe a crença purificadora, para
limpar o ar empestado. A natureza tira com uma mão, mas dá com a outra.
O odor da morte voltou a pairar, ainda que distante,
tal como há 100 anos atrás, quando a “Gripe Espanhola” veio ceifar a vida de
muitos calipolenses.
A esplanada do "Restauração" está vazia e
não se ouve o papagaio do café do Manuel Lobo, a assobiar dentro da sua gaiola.
No fundo, agora somos todos nós que estamos encarcerados, presos às amarras
desta pandemia… Quem dera que isto passe quando chegarem os caracóis, com a
cerveja fresca e uma roda de amigos... Sente-se muito a falta dos forasteiros
na vila, que aqui acudiam, à procura da essência desse tempo distante, em que a
corte dos Duques brilhava com luz própria.
Esta inusitada pausa invadiu de tristeza a nobre
"Princesa do Alentejo", despida de gente e imersa numa profunda
nostalgia, saudosa dos dias felizes em que crianças invadiam o Terreiro do
Paço, imaginando mil aventuras de cavaleiros e princesas encantadas. O esvoaçar
dos pombos, livres, por entre o jardim da Duquesa e a fachada, é interrompido
subitamente pelo rebater do sino do velho campanário da Capela. As janelas do
palácio estão com as portadas fechadas. Percorrer as câmaras desguarnecidas e
escuras traz à memória histórias de outrora, de amor e de traição, de intrigas
e de poder, de guerras e de paz. O vazio deixa-nos um nó na garganta… Subitamente,
quase que se escuta o monólogo dos guias, por entre as tapeçarias e as
armaduras.
Mas é somente ilusão. O silêncio é devastador e remete
para uma dura realidade Nunca tal tinha acontecido. Nunca, em mais de 500 anos
de história, as portas estiveram tanto tempo encerradas, sem que os raios de
luz pudessem entrar e encher de brilho os nobres salões. Subi a avenida dos
Duques, por entre o casario antigo, num percurso solitário e triste. As nuvens
negras do céu anunciam mais água. Este é um inverno dos antigos, do tempo dos
nossos avós. Não se vê vivalma.
O alvoroço dos turistas, por entre as ameias do
Castelo, é agora uma miragem.
Dizem-nos que isto vai passar… Mas quem nos sara estas
feridas?
Tiago Salgueiro
Abril 2020
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