A Pascoa de
2020 há-de ficar marcada na lembrança de todos como um tempo de restrições, de
preocupantes incertezas, de sofrimento e de luto à escala mundial. Em vez de se
celebrar festivamente a Ressureição, a Primavera, o ressurgir da vida,
contabilizaram-se os mortos, os doentes e outros afectados pela grande
pandemia. Em vez da tradicional ida até ao campo, da calorosa e livre
confraternização, houve confinamento forçado. Mais parece que temos vivido uma
Quaresma invulgarmente longa e austera, que já ultrapassa a quarentena e que
nos sujeita e jejuns e abstinências de todo o tipo, nomeadamente de afectos.
Pela nossa
parte, cumprimos o mais à risca possível esta espécie de penitência, seguindo
os aconselhamentos que nos foram transmitidos. Verdade seja dita, no meio de
tanto infortúnio, consideramo-nos com sorte.
Impossibilitados
de concretizar planos há muito sonhados, de vaguear despreocupadamente pelas
ruas e frequentar os locais habituais, salvou-nos a leitura e a escrita, que
são excelentes meios de evasão, de libertação. Passámos longas horas de roda de
livros, fotografias, papéis de quase uma vida. De alguns já nem nos lembrávamos
da sua existência. Foi assim que conseguimos aliviar, em grande parte, o peso
do confinamento, revisitando textos já antes lidos, mas cuja leitura continua a
dar-nos um prazer sempre renovado. Foi o caso do divertidíssimo poema de
António Lobo Antunes, inspirado no tema da gripe e onde o escritor satiriza o
comportamento piegas de alguns homens quando se constipam:
Pachos na testa, terço na mão
Uma botija, chá de limão,
Zaragatoas, vinho com mel,
Três aspirinas, creme na pelo,
Grito de medo, chamo a mulher.
Ai Lurdes que vou morrer.
Mede-me a febre, olha-me a goela,
Cala os miúdos, fecha a janela,
Não quero canja,nem a salada,
Ai Lurdes, Lurdes não vales nada.
Se tu sonhasses como eu me sinto,
Já vejo a morte, nunca te minto,
Já vejo o inferno, chamas,diabos,
Anjos estranhos, cornos e rabos,
Vejo demónios nas suas danças,
Tigres sem listras, bodes sem
tranças,
Choros de corujas, risos de grilo.
Ai Lurdes, Lurdes fica comigo.
Não é o pingo de uma torneira,
Põe-me a Santinha à cabeceira,
Compõe-me a colcha,
Fala ao prior, pousa o Jesus no
cobertor.
Chama o Doutor, passa a chamada,
Ai Lurdes, Lurdes nem dás por nada.
Faz-me tisana e pão de ló,
Não te levantes que fico só,
Aqui sozinho a apodrecer,
Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer.
A idéia de
que, em situações de austeridade ou isolamento prolongado, são necessárias válvulas
de escape que conduzam a um certo desanuviamento, faz com que, a longo dos
séculos, fossem toleradas algumas práticas profanas em pleno período quaresmal.
Foi assim com as ancestrais Queima do Judas e a Serração da Velha.
A Serração
da Velha, que é destas duas tradições a que conhecemos melhor, realizava-se (e
ainda se realiza nalgumas localidades) a meio da Quaresma. Com todo este
folguedo pretendia-se fazer uma pausa no ambiente austero recomendado durante a
quarentena que antecede a Páscoa.
Em Montemor-o-Novo,
a Serração da Velha tinha habitualmente lugar nas colectividades de cultura e
recreio, coincidindo frequentemente com o baile da Mi-Carême (expressão
francesa que significa a Meio da Quaresma).
Em anos um
pouco mais distantes, o ritual consistia num cortejo co carros ornamentados,
que culminava, na sede das colectividades, com a representação do julgamento da
velha, normalmente uma figura masculina travestida.
A velha,
acusada dos males da sociedade, costumava ser baptizada com nomes muito peculiares.
O fotógrafo e amigo Joaquim Casimiro Chapa lembrou-nos que lhe coube o papel de
velha numa Serração realizada em 1988, na Sociedade Carlista. Nesse ano o nome
escolhido foi Pombinha Azelha. Em 1947, o acusado chamava-se Lulu Zecas Laroia
e, em 1961, atribuíram-lhe o nome de Flausina Lambisgoia. Em 1974, a velha
solteirona apresentou-se coo Dona Rufina Abília Flausina Narigueta Pitrolina.
No meio dos
papéis que vasculhamos, encontramos uns versos impressos em 1806, com todas as
licenças, na Impressão Regia de Lisboa, em que a velha era apresentada como
Quaresma Clemente, neta de Carnava Leitão e visavó de Páscoa Cordeira. Os
versos fora escritos por Francisco Marianno do Advento. Foi através de uma
colectânea de literatura de cordel, organizada e prefaciada pelo poeta e pintor
Mário Cesarany que descobrimos os divertidos versos.
Nos
espectáculos a que assistimos ou em que participamos, simulava-se um tribunal,
onde, debaixo do choro de carpideiras se procedia ao julgamento da acusada com
a indispensável identificação, as respectivas acusação e defesa, terminando com
a sentença de morte, a tão aguardada leitura do testamento e a serração da
prae. O testamento era feito em quadras populares que faziam alusões jucosas a
pessoas e instituições da terra. Os alvos preferidos era os famosos comilões e
beberrões, as raparigas e os rapazes namoradeiros, os solteirões e solteironas,
etc…
A Serração
da Velha constituía um momento de critica social, política e moral,
estabelecendo uma relação muito íntima com a comunidade local, onde todos
conheciam toda a gente.
No dia 12 de
Março de 2004, lembramo-nos de ter ajudado a organizar uma Serração, uma das
últimas à moda antiga, com direito a cortejo pelas ruas. Participaram nessa
manifestação popular alguns amadores da Sociedade Carlista, jovens actores do
Grupo de Teatro da Escola Secundária, elementos da Banda da Carlista e da
Fanfarra dos Bombeiros. Mais tarde pensámos numa outra brincadeira deste tipo,
com alunos e alunas da Universidade Sénior do G.A.M.
Arendemos com
os mais velhos, nomeadamente com o Manuel Justino Ferreira e o Leopoldo Gomes,
a recuperar estas tradições. Mas, se já é estimulante o saber fazer dos mais
velhos, o interesse aumenta quando pensamos que este género de teatro popular
tem profundas raízes em manifestações teatrais bem mais antigas, como, é o caso
do teatro de Gil Vicente. Basta pensar nas peças Triunfo do Inverno e Pranto da
Maria Parda para encontrarmos aí inúmeros pontos de contacto. Apesar da
gravidade de alguns assuntos abordados, o grande Mestre Gil tinha a capacidade
de levá-los à cena em forma de sátira e fazer disso uma grande festa.
E porque
estamos em tempo de crise, não resistimos a dizer-lhe, estimado leitor, que no
seculo XVI, no mesmo século em que Gil Vicente viveu parte da sua existência,
apareceu um outro homem,
sapateiro de Trancoso e considerado por muitos um
poeta, um visionário, um profeta. Chamavam-se Gonçalo Anes e ficou conhecido
pela alcunha de Bandarra. Não se pense, porem, que foi apenas o povo humilde
que deu crédito às suas profecias. Nomes de proa da nossa literatura, como D,
João de Castro, o grande pregador Padre António Vieira e o modernista Fernando
Pessoa, reconheceram os méritos premonitórios do “sapateiro que foi alem da chinela” . Pessoa viu em Bandarra “o símbolo eterno do que o povo pensa de
Portugal”.
Ao longo da
nossa história, vários foram os momentos em que se explorou a linguagem
carregada de símbolos e imprecisa do poeta-sapateiro, sobretudo em períodos
dominados pelo medo ou em que se sentiu necessidade de estimular o ânimo dos
portugueses. Sucedeu assim, por exemplo com o mito sebastianista, com o período
da Restauração, ou com o tempo das Invasões Francesas.
Depois de
uma visão do mundo mergulhado em grande perigo, Bandarra vaticina, nas suas trovas,
tempos de mudança, de Prosperidade, de Paz, de Concórdia…de Felicidade.
Deus o oiça
poeta Bandarra!
E pronto,
estimado leitor. Se com estas Memórias, entre o popular e o livresco, o
ajudámos a aliniar, nem que seja por momentos, a angústia do confinamento, já
valeu a pena o discurso.
Até…?!
Vitor Guita
In: O Montemorense
Abril 2020
Sem comentários:
Enviar um comentário