Foi autor do projeto, o advogado beirão Duarte de Roboredo Sampaio e Melo,
deputado do Partido Progressista pelo círculo da Guarda, eleito pela primeira
vez no ano anterior, apresentou-o na Câmara dos Deputados no dia 1 de março de 1900, tendo a segunda
leitura ocorrido quatro dias mais tarde.
Com apenas cinco artigos, estabelecia o divórcio «para todos os efeitos
civis», sendo que «os judicialmente divorciados de matrimónio» contraído pela
Igreja Católica, embora não pudessem voltar a casar pela Igreja, podiam-no
fazer civilmente. Os motivos que podiam ser aceites para o pedido de
divórcio eram os que já estavam previstos no Código Civil para a separação de
pessoas e bens, ou seja, a condenação de um dos cônjuges a pena
perpétua, «as sevícias e injúrias graves», e o adultério, sendo que, no caso de
adultério do marido, este só era admitido como causa legítima se fosse
acompanhado de «escândalo público», de «completo desamparo da mulher» ou de
manutenção de concubina no lar conjugal.
Pormenores de artigo humorístico de
Rafael Bordalo Pinheiro. “A Paródia”, 14 de março de 1900, p. 66-67.
Mas se o Código Civil determinava que a separação só podia ser solicitada
pelo «cônjuge inocente»,6 o projeto de Sampaio e Melo
instituía a possibilidade de o divórcio também poder resultar de mútuo consenso
entre os cônjuges, ou seja, sem litígio, mesmo que dentro de determinadas
condições.
No preâmbulo, Sampaio e Melo justificou a apresentação do projeto com o
desfasamento dos preceitos do Código Civil de 1867 relativamente à evolução da
realidade social, sobretudo no que dizia respeito ao direito da família, e a necessidade do
direito civil português acompanhar o desenvolvimento que essa matéria estava a
conhecer nos países mais avançados, onde se tinha vindo a adotar «uma
orientação mais social e natural, livre e humanitária». Um bom exemplo
desta mudança no pensamento jurídico internacional era o facto de um grupo
alargado de países já ter introduzido o divórcio nas suas leis, entre
eles a Alemanha, os Estados Unidos, a Inglaterra, o Japão, os Países Baixos, a
Rússia e mesmo países católicos como a Áustria-Hungria, a Bélgica ou a França.
Estes três últimos casos serviram para Sampaio e Melo demonstrar que era
possível conciliar o catolicismo como religião oficial do Estado e a vigência
de uma lei de divórcio, até porque o seu projeto não pretendia interferir
com as convicções religiosas dos católicos, somente desejava que quem não fosse
católico pudesse dar o rumo que entendesse à sua vida conjugal:
Pormenores de artigo humorístico de
Rafael Bordalo Pinheiro. “A Paródia”, 14 de março de 1900, p. 66-67.
«A religião católica nada tem a sofrer com o divórcio para os
não-católicos. Demais, longe de mim levantar um conflito religioso. Os
católicos que fiquem com a sua indissolubilidade de matrimónio sacramento. Não
façamos violências à sua consciência. Mas não queiram eles também essa
violência às consciências e modo de pensar e sentir dos outros cidadãos
não-católicos cuja existência na sociedade portuguesa é um facto, reconhecido
pela própria Carta Constitucional, que dia a dia mais se acentua e alastra.»
Outra razão invocada por Sampaio e Melo para fundamentar o seu projeto
tinha a ver com as consequências da disparidade que muitas vezes se verificava
entre o ideal do casamento baseado no amor eterno e os desafios do quotidiano
familiar moderno:
«A cada passo, a realidade da vida vem duramente fazer sentir aos esposos
que se iludiram; que entre eles não há as afinidades que imaginaram; que por
isso o amor, a família é entre eles impossível e muitas vezes a intensidade e
variabilidade da vida social moderna faz falir de um momento para o outro uma
associação familiar ao princípio bem constituída, como faz falir outras
associações de vida mais ampla».
Nestas situações, obrigar duas pessoas que já não tinham amor e
respeito uma pela outra a manter-se casadas constituía uma violência, com um
impacto terrível no seio familiar, ainda mais quando existiam filhos. Em certos
casos, a impossibilidade de pôr término a um casamento falhado podia até levar
ao crime, e, recorrendo a dados estatísticos e à autoridade científica do
criminologista italiano Cesare Lombroso, Sampaio e Melo avançou que os países
com divórcio tinham menos criminalidade do que os que não o tinham.
O projeto foi admitido e enviado à comissão de legislação civil. Como seria
de esperar, a imprensa católica reagiu com indignação, com o jornal A
Nação a atacar a iniciativa de Sampaio e Melo e a considerá-la uma
afronta e uma agressão à religião oficial do Estado e às convicções religiosas
da maioria dos portugueses.7 Os jornais republicanos aplaudiram
o deputado progressista,8 mas A Pátria não
tinha ilusões quanto ao destino que esperava o projeto: nas suas palavras,
seria «sepultado no arquivo da Câmara [dos Deputados]».9 Já o monárquico Diário
Ilustrado relatava, com humor, o impacto social do projeto de lei do
divórcio: «[…] caiu de chofre, sobre a capital e sobre o País o projeto de lei
do divórcio do sr. Roboredo de Sampaio e Melo. Sendo para todos nós um
desconhecido, ou pouco menos, este ilustre membro da maioria, alcançou, de um
dia para o outro, maior notoriedade que os mais famosos filhos da nossa boa
terra de Portugal, desde o Egas Moniz do princípio da monarquia até ao Egas
Moniz do Partido Progressista. […] Enquanto o projeto do divórcio agita para aí
as massas… encefálicas de muitas damas que deram o nó e de muitos cavalheiros
que estão para o dar, todos os jornais discutem a sua obra, o seu retrato e a
sua caricatura andam de mão e mão […] Não há uma casa onde não se fale
do divórcio; uma mesa de café junto da qual não surja, como tema de palestra, o
trabalho do sr. Roboredo; um corredor de teatro onde, nos intervalos, não se
diga da justiça própria e da alheia sobre o projeto de lei».
Pormenores de artigo humorístico de
Rafael Bordalo Pinheiro. “A Paródia”, 14 de março de 1900, p. 66-67.
Três meses mais tarde, a 5 de junho, António dos Santos
Viegas, padre e deputado do Partido Regenerador que se vinha destacando no
Parlamento desde há duas décadas com as suas numerosas intervenções sobre
matérias eclesiásticas,11 adicionou mais
uma ao seu historial, ao discursar sobre o projeto de lei do divórcio, cuja
eventual aprovação classificou como uma «calamidade». Depois,
passou à afirmação da superioridade do modelo familiar católico e da
indissolubilidade do casamento:
«Sr. Presidente, creio que não pode dar-se à família um ideal, uma
constituição mais perfeita e que mais beneficamente influa sobre a sociedade,
do que aquela que lhe foi dada pelo fundador do cristianismo. Estudado à luz do
evangelho […], estudado à luz desse código, sempre antigo e sempre novo, porque
se molda admiravelmente a todas as circunstâncias […], o matrimónio tem por sua
natureza o vínculo da indissolubilidade. […] Ninguém pode separar
aquilo, que Deus uniu. Sei, sr. Presidente, que a doutrina do divórcio não é
nova; sei também, sr. Presidente, que contra ela protesta o direito natural e o
evangelho, (Apoiados) e protesta ainda a Igreja e protestará sempre,
porque ela é a guarda fiel e a legítima defensora dos interesses sociais. (Apoiados)».
No dia 6, Sampaio e Melo respondeu a Santos
Viegas. Identificou os quatro pontos principais das críticas de que havia
sido alvo por parte de Santos Viegas (e provavelmente também da imprensa
católica) e refutou-os um a um:
Pormenores de artigo humorístico de
Rafael Bordalo Pinheiro. “A Paródia”, 14 de março de 1900, p. 66-67.
«Passo a demonstrar em breves palavras, […] que o divórcio não é
irreligioso, que não é mesmo contrário ao Evangelho, que não é imoral e
contrário ao direito natural e que tem por si a estatística. Porque é que o
divórcio é irreligioso? O sr. Santos Viegas não o disse. Nem o podia dizer,
porque o não é. […] A Rússia e a Grécia que são cristãs têm o divórcio. Todas
as nações da Europa que são protestantes e que, não obstante isto, são também
cristãs, por mais que isso pese ao ilustre deputado têm o divórcio. […] Mas diz
s. ex.ª: o catolicismo não o admite porque o não admite o Evangelho. Não é
assim. O Evangelho admite o divórcio. Basta ler a página mais brilhante do
cristianismo, o Sermão da Montanha, para se ver que o Evangelho permite o
divórcio. As nações católicas da Bélgica e da Áustria e Hungria, para não citar
outras, têm o divórcio. […] O divórcio não é repudiado, antes é imposto, pelo
direito natural e pela moral. Supondo, como alguns publicistas querem, que o
casamento não é um simples contrato mas uma associação fundada ou determinada
pelo sentimento moral do amor, deve esta associação, esta união íntima ser
orientada pelo princípio superior da liberdade e da inteira igualdade. Desde
que o amor não existe, desde que entre os cônjuges se quebraram os laços que os
uniam, desde que um e outro deixaram de cumprir os deveres que a lei e a moral
lhes impõe, desde que qualquer deles deixe de observar a fidelidade jurada ou
não presta a proteção prometida, antes a substitui pelo abandono e desprezo,
quando o não é pela mais estúpida brutalidade, o que resta? […] Em nome de que
moral se obrigam os esposos, simplesmente separados, a calcar os impulsos
invencíveis da Natureza ou a lançarem-se numa vida torpe de adultério e de
prostituição, dando origem a filhos adulterinos ou a infanticídios? Quantos
crimes de veneno e de punhal não evita o divórcio? Também a estatística prova
que nos países sujeitos ao regime do divórcio a criminalidade é menor do que
naqueles em que o não há.»
Pormenores de artigo humorístico de
Rafael Bordalo Pinheiro. “A Paródia”, 14 de março de 1900, p. 66-67.
Santos Viegas ainda ripostou, mas, em vez de manter o enfoque na questão do
divórcio, usou a sua astúcia política para o deslocar para a dimensão mais anticlerical
da intervenção de Sampaio e Melo, a qual, a determinada altura, tinha
incluído uma denúncia da corrupção na Cúria Romana, acusando-a de autorizar o
divórcio em troca de dinheiro, bem como das supostas irregularidades e abusos
cometidos pelos padres no âmbito das suas funções enquanto responsáveis pelos
registos paroquiais. Os oradores trocaram argumentos com alguma
intensidade, porém, o momento mais exaltado já tinha ocorrido quando
Sampaio e Melo discursara, com os deputados regeneradores a protestarem
ruidosamente e os progressistas a responderem na mesma medida. Pelo meio, o
deputado progressista João Monteiro Vieira de Castro, também padre, sentiu-se
injuriado enquanto membro da Igreja e protestou contra o seu colega de partido.
Os anos passaram-se sem que fosse emitido o parecer da comissão de
legislação civil. Assim, em maio de 1908, num contexto em que o anticlericalismo
havia ressurgido como uma das grandes bandeiras republicanas no combate contra
a Monarquia, o deputado progressista voltou à carga, apresentando uma proposta
de renovação da iniciativa referente à lei do divórcio. Em julho de 1909, dias antes da grande manifestação
anticlerical organizada pela Junta Liberal que terá reunido, em Lisboa, cerca
de 100 000 pessosas,12 Sampaio e Melo propôs outra
renovação, pois a comissão insistia em não elaborar um parecer. As representações enviadas à Câmara dos Deputados durante o
mês seguinte, pedindo a promulgação, ou pelo menos a discussão e
votação do projeto,13 não tiveram qualquer efeito prático e este ficou, uma vez mais,
convenientemente esquecido nos arquivos da comissão. A lei
do divórcio só chegaria, finalmente, em novembro do ano
seguinte, já pela mão do Governo Provisório da República.
Ricardo Revez
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