terça-feira, 3 de março de 2020

MEMÓRIAS CURTAS - RUBRICA MENSAL DO Prof Vitor Guita

Obrigado, Professor!
As Memórias deste mês hão-de servir para evocar o professor e amigo Carlos Dinis Tomás Cebola.
Terça-feira, dia 4 de Fevereiro de 2020. Cerca das nove horas da manhã chegava-nos a notícia da sua morte. Utilizando uma linguagem teatral, tão do seu agrado, e admitindo que a vida é um palco onde cada um é actor, poder-se-á dizer que, terminado o último acto, se apagaram as luzes e o pano fechou. Do nosso ponto de vista, o pano de boca ficará sempre entreaberto, permitindo continuar a sonhar com a melhor maneira de pôr em cena tão belos textos que o professor nos deixou.
Para nos referirmos à vida e obra de Carlos Cebola, em vez de criarmos texto novo, fomos rebuscar, com algumas adaptações, muitas das palavras que nós próprios escrevemos em Julho de 2011, no dia em que o Grupo Amigos de Montemor-o-Novo quis prestar-lhe homenagem.
Nessa altura escrevemos:
Afortunada terra que acolhe um homem com o carácter, o saber e o talento do Professor Carlos Cebola.
Natural de Nisa, com as Portas do Ródão ali tão perto, quis, talvez o destino, que Carlos Dinis Tomás Cebola se deixasse enfeitiçar por Montemor, o maior dos Montes que se erguem nas margens do Almansor.
Aqui decidiu viver a maior parte da sua vida; aqui ensinou; aqui fez amizades; aqui se apaixonou e casou; aqui viu nascer os seus dois filhos, que são, segundo as suas próprias palavras, o maior bem de quantos bens sonhou vir a ter.
Com a palete e os pincéis dos seus versos, e também da sua prosa, Carlos Cebola celebrou de forma genial esta vila notável, hoje cidade, cantando a paisagem, as ruas, os velhos monumentos, a gente simples e também alguns dos filhos mais ilustres de Montemor.
E só é possível poetar de forma tão inspirada, só se consegue pôr a alma em palavras sublimes, quem muito pensa e muito sente, quem muito se entrega e muito ama, mas também tem a capacidade de se indignar, sendo que a indignação é, muitas vezes, o resultado de muito se gostar.
Celebrar, exaltar, poetar, cantar. De todos estes estes verbos, se tivermos de escolher um deles, talvez o verbo cantar seja aquele que melhor se ajusta à criação literária do professor, que, pelo que sabemos, foi sempre um melómano devotado. Fazia parte das suas rotinas transformar o espaço de trabalho em sala de concertos ouvindo as mais belas interpretações de violino e piano, as melhores orquestras, as mais esplendorosas vozes dos mais virtuosos cantores.
Aliás o professor Carlos Cebola gostava de sublinhar que “entrou” para o teatro através da música. Foi em 1950 que o então jovem aluno do Magistério Primário de Évora compõe as canções para uma opereta que aquela escola levou a efeito. Já no exercício da docência, em Reguengos de Monsaraz, organizou espectáculos com a miudagem, sendo ele o autor da música e dos textos.
Depois, vindo para Montemor e as instâncias de um grande amigo e homem de teatro, o professor Manuel Balbino, levaram Carlos Cebola a fazer uma incursão pelo chamado teatro para adultos. Pelo visto, tomou-lhe o gosto.
Em 1956, escreveu Três tardes de Três Outonos. O salão da Pedrista foi pequeno no dia da estreia. Em 1959, é autor de A Cigarra E a Formiga, quanto a nós, a mais bela versão da velha fábula, que já deu origem a múltiplas encenações e representações.
Em 1960, sai à cena A Acácia do Quintal, que mereceu honras televisivas e cujo teto dramático viria a ser editado, em separata, pela revista Hunanitas do Instituto de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Os anos 60 foram extraordinariamente fecundos no que concerne à escrita teatral. A peça O Quinto Mandamento, escrita em 1962 e que esteve proibida pela Censura durante cerca de dois anos, acabou por subir ao palco, permitindo ao Grupo Cénico da Dramática Eborense, dirigida por José Saloio, ganhar todos os prémios que estiveram em disputa no Teatro da Trindade em Lisboa.
Também a peça João Cidade, que surgiu pouco depois, marcou um dos pontos altos do percurso literário do autor. A estreia aconteceu no dia 8 de Março de 1964 e teve lugar no palco da Pedrista. A encenação foi do próprio autor, e ficaram inesquecíveis as interpretações dos amadores do Circulo Montemorense.
O professor tinha o dom de ser um homem de teatro na verdadeira acepção da palavra. Sabia escrever e dirigir; tinha a capacidade de escolher o texto que melhor se adaptava à cena; era capaz de por na pele dos actores, indo ao encontro, se necessário, das características peculiares de cada um. E isso é privilégio de muito poucos.
A peça João Cidade veio a ser apresentada, anos mais tarde, por outra geração de actores e encenadores.
Ainda nos anos 60, mais precisamente na noite de Julho de 1966, a RTP apresentou a peça Retrato de Marcelo, da autoria de Carlos Cebola.
Após a década de 60, seguiu-se um longo interregno de vinte e muitos anos, no que diz respeito ao teatro para adultos. Em Luanda, cidade para onde a vida profissional o fez viajar, o professor Cebola, a par da actividade radiofónica, voltou às peças infantis, produzindo reportório para a Companhia de Teatro de Angola. No início dos anos 70, escreveu o Natal do Capuchinho, apresentado em Lisboa por Vasco Morgado, no Teatro Monumental e no Politeama. São ainda da sua autoria Uma Aventura de Aladino e os Brinquedos do Mestre André, ambas destinadas aos mais novos.
Depois de novo e prolongado interregno, o regresso a Montemor, em 1994, parece ter dado novo alento ao dramaturgo, que reviu, corrigiu e aumentou o texto da peça João Cidade que o Grupo de Teatro da Escola Secundária de Montemor-o-Novo levou à cena em 1995, por ocasião do V centenário do Nascimento de São João de Deus.
Seguiram-se as peças Tamar e In(e)vasões cujas representações estivera a cargo da Associação Theatron.
Entretanto, outros textos foram saindo da inspirada ena do professor Cebola. Foi o caso de  A Margem de Lá e das peças de teatro infantil A Nuvem e o Vento  e Era uma vez uma Princesa, que tanto quanto sabemos, ainda não foram exibidas em público.
O fermento de outros projectos teatrais não parou de crescer. Referimo-nos ao Último  Serão no Paço do Marquês de Montemor, á peça Frei Adão e o Livro de Bem Sira. Terá havido provavelmente outros.
Em nota escrita que o professor Cebola nos fez chegar há algum tempo, ele afirmava: “Estou a trabalhar sem ritmo, no pior sentido!”. Nessa altura, apeteceu-nos dizer-lhe: Calma professor. Que grande pedalada! A oferta já excede largamente a procura.
O autor era de opinião de que ninguém escreve para guardar na gaveta. Boa parte do que produziu teve merecido reconhecimento público e, por certo, continuará a ter. Esse é o privilégio dos bons escritores: a perenidade da sua obra.
A escrita do professor Calos Cebola não se limitou ao teatro. Alem das contribuições que ao longo dos anos, deu à imprensa regional quer de Montemor quer de Nisa, tem trabalho de investigação publicado, como é o caso do livro Nisa – A outra História. Pertence-lhe ainda uma quantidade apreciável de poemas que constam do livro Em Montemor, o Maior.
Trata-se de uma escrita inteligente, delicada, de uma filigrana cada vez mais rara, salpicada de uma fina ironia, muitas vezes de um tom jocoso, bem-humorado, a contrastar com momentos de amargurada tensão. Tudo é profundamente musical, de um cuidado formal inexcedível, em que o popular se junta com a melhor erudição clássica, sem nunca fazer cedência ao mau gosto.
Toda a sua obra, multifacetada, é a epressão coerente de um homem integro, determinado, corajoso, que não esconde a sua simpatia por valores como liberdade e justiça, a fraternidade, o amor, anseios naturais do homem e forças capazes de transformar o mundo.           
A par de um cidadão delicado, simples, frágil na aparência, coabitava um indivíduo inquieto, irreverente, diremos mesmo dissidente, que gostava de questionar e combater as verdades feitas, as Histórias de alguns, sempre na busca do não-dito, sem fechar os caminhos da esperança.
Pelo prazer que tem proporcionado a todos aqueles que o lêem, velhos e novos, por aquilo que nos trouxe sempre de novidade, pela forma como constantemente nos surpreendeu e or outras boas razões, a obra de Carlos Cebola continua a ser uma absoluta modernidade.
Obrigado, Professor!
Vitor Guita
In. “O Montemorense” – Fevereiro 2020

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