O tema da
pandemia conduziu-nos de forma algo inesperada para outros tempos, outros
espaços, outras realidades, algumas delas contaminadas pelo ar do mar. Numa
espécie de navegação à vista, fomos aportar a lugares da memória onde dificilmente
chegaríamos se não fossemos influenciados pelo momento crítico que vivemos.
Quisemos, numa primeira escala, registar lembranças de quem viveu, por exemplo,
o surto da gripe asiática.
Andávamos na
escola quando a pandémica doença chegou a Portugal. Estávamos em 1957, talvez
princípios de 58. Os oito ou nove anos que tínhamos nessa altura permitem-nos
apenas ter uma imagem muito difusa do que foi a situação então vivida. Porem
com a ajuda da nossa irmã, uns anitos mais velha, conseguimos recuperar um
pouco do que se passou lá por causa.
Morávamos, nessa altura, na Carreira de S.
Francisco. Toda a família foi contaminada, passando a dormir em espaços
separados. Apesar de doente, era a nossa mãe que tinha que girar pelas casas,
limpando, cozinhando, tratando-nos, mudando frequentemente a roupa interior e a
das camas encharcadas em suor.
Tentamos
depois recolher testemunhos de familiares com mais anos do que nós. Dizia-nos a
nossa sogra Vitalina, referindo-se ao marido: quando vem esta porcaria das
gripes, carrega-lhe sempre com força. Por isso é que ele agora anda cheio de
medo!
Em 1957,
Manuel Serranito cumpria serviço na Marinha, no Grupo nº1 de Escolas da Armada,
em Vila Franca de ira. Depois da recruta e do curso de artilheiro, o Serranita
passou para a classe da taifa, que agrupava praças e sargentos cuja função era
garantir a alimentação das guarnições dos navios e das unidades em terra.
Naquele ano,
o então criado da taifa foi fortemente atingido pela gripe asiática. Curou-se,
no entanto, sem ficar de cama, nunca deixando de ir ao serviço. Tinha de
levantar-se diariamente, manhanzinha cedo, para preparar as cerca de duzentas
sandes para os cadetes da Marinha Mercante que faziam obrigatoriamente uma
parte do curso na escola de Vila Franca de ira. Era aguentar e cara alegre.
Faltas por doença não adquirida em serviço implicava perda de antiguidade e,
consequentemente, prejuízo na carreira.
A passagem
pela taifa introduziu profunda alteração na vida do Serranito. A mudança foi
tal, que deixou de ser o número 7601 e passou a ser chamado pelo seu próprio
nome, com direito a receber o vencimento em envelope. Chegaram a pagar-lhe nove
contos de réis, incluindo retroactivos. Uma pequena fortuna naquela altura, que
deu para o Serranito chegar a casa e pagar as dividas que a mãe vinha
acumulando na venda de Patalim e nos Abílios, conhecidos vendedores ambulantes.
O marinheiro
nunca mais esqueceu o momento em que puxou por um molho de notas, no meio da
taberna cheia de gente. Os comentários de alguns dos presentes não se fizeram
esperar. Diziam uns ironicamente: Estão a ver! Estas notas não foram ganhas a
trabalhar no campo, mas com os peies! Outros insinuavam: Está na Marinha há tão
pouco tempo e já se apresenta com notas deste tamanho!
O Serranito
ainda hoje não perdoa a quem pôs em dúvida a maneira esforçada com que ganhou o
dinheiro.
Em 1958 o
criado da taifa concorreria à Polícia Marítima, passando a fazer serviço nos
paquetes das grandes companhias: Cª Nacional de Navegação, Cª Colonial de
Navegação, Cª Insulana, entre outras. Cada Companhia utilizava cais próprios:
Santa Apolónia, Santos, Rocha de Conde de Óbidos, Alcântara.
O porto de
Lisboa, mesmo ainda antes da guerra de África, já movimentava um número imenso
de navios de carga e de passageiros cujos destinos eram principalmente as
antigas colónias, as Ilhas dos Açores e da Madeira, as Américas, além de outros
lugares. Estão seguramente na lembrança de muitos dos estimados leitores nomes
de navios como: o Vera Cruz, o Santa Maria, O Pátria o Príncipe Perfeito, o
Cuanza, o Angola, O moçambique, o Uíge, o Funchal….
De acordo
com consultas que fizemos, a gripe asiática chegou a Portugal em Agosto de
1957, num navio que chegou de África e que transportou passageiros infectados.
A partir da chegada do navio Moçambique a Lisboa geraram-se sucessivos focos da
doença viral. Terá sido uma família infectada que fez a transmissão do vírus a
outros familiares que vieram assistir à sua chegada e que voltaram para o
Norte. Nessa altura a informação era reduzida, o que facilitou a propagação da
gripe em cadeia.
A gripe
asiática normalmente detectada em aves, foi uma pandemia identificada na China,
em Fevereiro de 1957, e que se estendeu aos Estados Unidos e a outras partes do
mundo, provocando milhares e milhares de mortes especialmente nos mais idosos.
Portugal, como já dissemos, não ficou incólume, tendo-se arrastado o surto até
à Primavera de 58. O período de ataque durou vários meses e, quando já se
julgava ter passado o pior, houve nova onda de infecções.
Deixado o
tema da asiática, houve ainda tempo para conversarmos com os nossos sogros
sobre outra pandemia mais antiga e bem mais devastadora, que ficou conhecida
por pneumónica ou gripe espanhola. Esta pandemia, que teve o seu início em
1918, alastrou durante um longuíssimo período de tempo por quase toda a parte
do mundo e provocou milhões de mortos. A pneumónica foi pior que a peste negra
e matou mais que a Grande Guerra.
Em Portugal
a maligna doença fez milhares de vítimas, entre os quais o pintor Amadeu de
Sousa Cardoso e também Francisco Marto e Jacinta Marto (dois ds pastorinhos de
Fátima).
Bem! Vamos
ficar por aqui. O estimado leitor vai-nos desculpar estas Memórias um tanto ou
quanto macabras, mas não foi fácil contornar o caminho que escolhemos sem
falarmos de coisas negativas.
Pensemos
positivamente e não se esqueça, estimado leitor: Cuide-se!
Vitor Guita
In Montemorense – Março
2020
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