terça-feira, 7 de janeiro de 2020

VASCULHAR O PASSADO - Rubrica mensal de Augusto Mesquita

Uma vez por mês Augusto Mesquita recorda-nos pessoas, monumentos, tradições usos e costumes de outros tempos
              A Cripta de S. João de Deus
Cripta de S. João de Deus

 A Igreja de S. João de Deus (actual Matriz) e a Cripta, faziam parte integrante do Convento dos Irmãos Hospitaleiros, construído para cabeça da Ordem Hospitaleira de S. João de Deus em Portugal, na então vila de Montemor-o-Novo.
As origens da casa religiosa da Rua Verde, iniciadas, sensivelmente no local onde nasceu o Patriarca dos hospitaleiros, partiu de dois devotos da piedosa obra social, o irmão João Pecador e o companheiro João Lopes Pinheiro, que vindos de Espanha, fundaram em 1607, com licença do Arcebispo D. Alexandre de Bragança um simples oratório onde mais tarde se inaugurou a cripta de S. João de Deus. Esta casa, comprada a Manuel Dias e a sua mulher Ana Gonçalves, acrescida de albergaria para pobres e peregrinos, cuja primeira pedra lhe lançou o Vigário-geral Padre Luís Rodrigues Seco, esteve praticamente desabitada até ao ano de 1623. Em 24 de Maio de 1625 D. José de Melo autorizou a vinda de dois frades castelhanos para dirigirem o novel instituto, em cerimónia antecedida de procissão que conduziu a imagem do padroeiro, então recolhida no Convento Dominicano de Santo António, vulgarmente conhecido por Convento de S. Domingos.
            Neste lugar, segundo a tradição venerável pela antiguidade, se afirma ter nascido no dia 8 de Março de 1495, em casa então situada na absorvida Rua Verde, o glorioso santo alentejano. Fica debaixo da sacristia da igreja que posteriormente  se construiu.
            Inicialmente, dispunha-se apenas de pequenina cripta de comunicação exterior para a Rua Verde, da qual subsiste a portada gótica granítica (talvez primitiva fresta), de chanfraduras e capitéis mediévicos, fito-antropomórficos, muito alterada por descasque intencional do chão, feito com intentos piedosos pelos enfermos em busca de remédio santo, pois ainda no ano de 1857, os fiéis comiam terra extraída debaixo do altar!
            Projectada em planta rectangular, a Cripta foi coberta por abóboda de berço em arco abatido, com acesso através da sacristia; pórtico de cantaria de mármore com arco em flecha e capitéis prismáticos; na parede fundeira mesa de altar de barriga e sobre ela nicho enquadrado por pequena composição retabular emoldurando o busto do santo.
            A sala maior se construiu em período impreciso do século XVII e esteve decorada, profusamente, por registos de pintura da hagiografia do padroeiro, alguns dos quais se podem ver expostos na sacristia. Sofreu obras importantes na grande empreitada de ampliação conventual dirigida pelo prior fr. Manuel Jacinto de Santo António em 1753, com reforço da abóbada, revestimento de costaneira, novas portas, grades e pinturas interiores.
            Na parede setentrional, dependurado  e emoldurado com talha de lóbulos dourados, admira-se curioso painel a óleo sobre tela, representando o nascimento de S. João de Deus, cópia presumível, com variantes, da composição atribuída a Bento Coelho da Silveira, de 1695, do sub-coro do templo, mas descaracterizado por sucessivos retoques de inábeis restauradores populistas. A sua maior curiosidade reside na interpretação iconográfica da torre sineira da Matriz do Castelo e do casario envolvente, em pomposa arquitectura barroca. Mede: alt. 0,83 x 1,35 m. A  cripta, era designada no tempo do mosteiro pelos religiosos, de “Casinha do nosso Santo”.
            Na sala que antecede a entrada na cripta existem várias imagens de S. João de Deus, pinturas do santo, e um túmulo de um dos muitos benfeitores que a ordem viria a ter na região.
            O volumoso túmulo do benemérito reitor da Matriz, Martinho Almadanim, lavrado em mármore branco de Estremoz, assente sobre três cabeças leoninas, inicialmente colocado no prospecto norte e removido para o actual sítio no ano de 1950, tem tampa emoldurada, lisa e alçado frontal disposto em dois rectângulos esculpidos. No primeiro lê-se a inscrição da caracteres romanos:
S.ª DO REITOR MARTINHO
                                                                        COELHO ALMADANIM
                                                                        COM OBRIGAÇÃO DE MI
                                                                        SSA COTODIANA

            No segundo, as três faixas das Almas, em escudo envolvido por paquife barroco. No timbre: “Chefe”. Aos pés: “Almas” (1.ª metade do séc. XVII). Foi violado pelos franceses de Loisan, em 28 de Julho de 1808.
            A cripta, totalmente descarnada em 1950, dos trabalhos de estuques coloridos, intencionais e geometrizantes, feitos nos começos do oitocentos, tem as paredes caiadas de branco e tecto abatido. O altar, discreta obra de mármores regionais, brancos, negros e raiados de oiro, do estilo neoclássico do tempo de D. Maria I, tem frontão circular, com volutas de enrolamento, colunelos da ordem coríntia e emblemas da Missão Hospitaleira. Crucifixo de marfim, e cruz de madeira exótica escura, do tipo tudesco e base de estilização marinha. Alt. Total 60 cm. (c.ª de 1700).
            No altar se venerou até 1950, curioso busto-relicário do Santo feito de madeira estofada da arte barroca seiscentista, que no ano de 1758 estava  encerrado condignamente em nicho de vidraça. Encontra-se, actualmente, no Hospital de S. João de Deus da Vila Notável, assim como a tela pintada da morte de S. João de Deus, quadro de autor desconhecido e de pouco mérito artístico, mas do maior interesse religioso.
            A grade de ferro forjado, exterior, da fresta da cripta, compõe-se de balaústres anclados, cilíndricos, terminados em puas: foi feito pelo serralheiro José Lopes, em 1757.
   O Governo liderado por Salazar, rejeitou a construção do monumento a S. João de Deus
 O município montemorense tentou homenagear o seu filho mais ilustre. Em 1933, a Comissão Administrativa da nossa Câmara Municipal presidida pelo Dr. Alfredo Maria Praça Cunhal, solicitou aos Senhores Ministros das Obras Públicas e da Instrução, a construção dum monumento a erigir na terra natal do santo montemorense ao grande filantropo S. João de Deus. Inexplicavelmente, o pedido não obteve a concordância do Governo.
                                                            Imóvel de Interesse Público
 A Cripta de S. João de Deus assim como a Igreja Matriz, foram classificadas como Imóvel de Interesse Público pelo Decreto n.º 37.801, de 2 de Maio de 1950.
                                        Inauguração do Monumento a S. João de Deus
 Três décadas depois da tentativa falhada, e com o objectivo de perpetuar a memória do seu filho mais ilustre, Montemor-o-Novo engalanou-se para receber no dia 2 de Setembro de 1963, o Senhor Presidente da República, Almirante Américo Tomás, que em visita oficial, inaugurou o Monumento a S. João de Deus, levantado em frente à Igreja Matriz, próximo do local onde nasceu.
            O Almirante Américo Tomás, fica ligado ao monumento dedicado ao grande João Cidade, que a igreja canonizou sob a denominação de S. João de Deus, pela oferta que fez, quando Ministro da Marinha, do bronze necessário à sua construção.
            O monumento importou em 74.326$50 (setenta e quatro mil trezentos e vinte seis escudos e cinquenta centavos), conforme a seguir se descrimina: fundição da estátua – 25.000$00; transporte da mesma – 1.000$00; empreiteiro – 26.500$00; arquitectos – 3.500$00; granito polido – 9.650$00; letras (fundição e colocação) – 6.806$50; e vários – 1.870$00.
            Durante anos, o monumento manteve-se impecável, até que as letras cravadas no pedestral foram desaparecendo, para espanto dos muitos peregrinos, que antes de visitarem a cripta, contemplam o monumento de homenagem ao santo montemorense.
            Em Agosto de 2008, o município mandou retirar as poucas letras de bronze ainda existentes, substituindo-as por gravação no granito.
            Além desta pequena iniciativa, o que fez o Poder Local Democrático para dar a conhecer a quem nos visita um resumo do historial do seu filho mais ilustre? Nada!
                                                                  Petição Pública
 Dirigida à Câmara Municipal de Montemor-o-Novo decorre via net uma petição pública, cujo teor a seguir refiro:
            “Em benefício do elevado número de peregrinos que vêm a Montemor-o-Novo visitar a casa onde nasceu S. João de Deus, pede-se à Câmara Municipal a criação de um Centro Interpretativo Histórico sobre a vida e obra do santo, no rés-do-chão livre da actual biblioteca municipal em frente à casa”.
            Concordo em absoluto com esta ideia, tanto mais que já existem várias recolhas sobre o historial de S. João de Deus realizadas pelo Engenheiro António Vacas de Carvalho e pela jovem Filomena Caetano, que aguardam um local para serem expostas.
            Na minha modesta opinião, já é tempo da Câmara Municipal de Montemor-o-Novo dar a conhecer a quem nos visita, o vasto historial do seu mais ilustre filho, beatificado em 21 de Setembro de 1630, considerado “Patrono da Vila” em 2 de Março de 1678, e canonizado em 16 de Outubro de 1690.
            Espera-se que a autarquia, além de ceder instalações devolutas do antigo Convento de S. João de Deus para instalação do ambicionado museu, encomende à Morbase, a reconstrução virtual da “Cripta”, do “Convento” e da “Igreja de S. João de Deus” (actual Matriz), de modo que estes trabalhos sejam mostrados aos visitantes quando da visita ao futuro Museu de S. João de Deus. Vamos a isso?

Augusto Mesquita
Dezembro/2019

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