quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

MEMÓRIAS CURTAS - Rubrica mensal do Prof Vitor Guita


o Prof. Vitor Guita traz-nos à memória, recordações do passado.


As conversas são como as cerejas. O mesmo acontece com a complexa teia de memórias. Puxar por um dos seus fios desencadeia frequentemente um emaranhado de lembranças por vezes difícil de controlar.
Num passado muito recente, visitamos a exposição de presépios que está patente ao público na vizinha aldeia de S. Geraldo. A mostra de presépios cheios de originalidades trouxe-nos uma infinidade de recordações de infância, em particular o entusiasmo com que era preparada a festa de Natal. Hoje em dia toda essa excitação se dilui, já que quadra natalícia começa a ser propagandeada com dois meses de antecedência.
Poucos dias antes do dia de Natal, por vezes na véspera ou na ante-véspera, pedíamos ajuda ao avô Zé Guita, para ir connosco até ao campo apanhar umas mantas de musgo, uns fetos, umas bagas vermelhas e uma formosa pernada de pinheiro. Lá em casa, árvore de Natal e presépio sempre conviveram mito bem.
A profissão de abegão fazia com que o nosso avô conhecesse todos os recantos campestres dos arrabaldes. Os homens das quintas e outros ligados à lavoura solicitavam frequentemente os serviços do mestre Zé para fazer umas forquilhas ou umas pás em madeira, construir ou reparar charruas, arados, rodas e outras peças de carroça.
Um dos lugares onde o avô Guita costumava ir connosco buscar o inheiro de Natal era à Quinta da Asneira. Nas traseiras da Quinta houve em tempos uma apreciável mancha de pinheiros. Hoje o pinhal está reduzido a uma dezena de árvores, o que provoca em nós uma sensação semelhante àquela que Almeida Garret experimentou nas suas Viagens, quando a caminho de Santarém, atravessou o Pinhal da Azambuja. Dizia ele: “Este é que é o pinhal da Azambuja? Não pode ser. Esta aquela antiga selva temida quase religiosamente como um bosque druído!  E eu, quem em pequeno, nunca ouvia contar a história de Pedro de Malas- Artes, que logo, em imaginação, lhe não pusesse a cena aqui por perto! (…) Oh! Que ainda me faltava perder mais esta ilusão…”
As selvas e os bosques aparecem frequentemente associados a episódios de fantasia e de mistério.
A Quinta da Asneira constitui um dos muitos paraísos da nossa infância. Passámos ali alguns dos dias mais felizes na companhia de familiares e amigos. A belíssima quinta carregada de elementos simbólicos, era um dos espaços de lazer visitados pelo pessoal lá de casa.
A nossa avó paterna costumava levar ali os netos para respirarem os ares da Quinta, em particular o aroma dos pinheiros. A tia Mariana Salgado estava convencida que toda aquela salubre atmosfera fazia bem à tosse convulsa. Outras vezes acompanhava-nos até à estação do caminho de ferro para assistirmos ao resfolgar da locomotiva a carvão e inalarmos aquelas densas nuvens de vapor.
A área da Quinta extravasava (ainda extravasa, embora de forma mais reduzida) o espaço intramuros.  No cabeço que se ergue nas traseiras da moradia há plantada uma vasta área de olival. Um amigo nosso chamou-nos a atenção para a existência da várzea.
Moraram e cuidaram da Quina, entre outros, o António Diogo Ferreira (António Pança) e José Filipe Tibó.
Quisemos percorrer alguns dos arruamentos e revisitar espaços que fazem parte do nosso imaginário e seguramente do de muitos montemorenses.
O nosso cicerone foi o amigo Alexandre Rebotim, a pessoa escolhida pelos actuais proprietários para zelar pela Quinta, agora em fase de remodelação.
Algumas das velhas e frondosas árvores já foram cortadas, mas as fontes e os tanques continuam a marcar presença, testemunhando a abundância de água. Aos pés do casario passa uma levada onde convergem regatos que ali vão parar. Mas a fonte dos nossos encantos era a Fonte Monumental. De estilo barroco, que foi, ao longo dos tempos, lugar acolhedor, propício para a conversa, para o convívio e certamente para muito namoro. Fomos revisita-la. Ali está ela, a velha fonte, à espera de restauro. Socorremo-nos de estudos do historiador Dr. Banha de Andrade e do Inventário Artístico elaborado por Túlio Espanca para darmos a conhecer, embora de forma mais abreviada, o historial da Quinta. Tal como as pessoas também o património edificado tem o seu historial de vida.
A Quinta do Pomarinho, mais tarde conhecida por Quinta da Asneira ou do Gião, fez parte, no século XVI, do património da Ordem de Santiago, tendo posteriormente pertencido ao Convento de Nª Srª da Conceição, até à extinção das Ordens Religiosas.
Túlio Espanca dá destaque ao portão de entrada, que aparenta ser do Século XVIII, mas cuja obra terá sido beneficiada no ano de 1893, conforme inscrição que ainda hoje pode ser vista por quem passa na estrada. Segundo o mesmo autor, são do tempo da falecida proprietária D. Isaura Gião muitas das obras que beneficiaram fontanários, taças e nascentes, cujas águas, recomendadas medicinalmente, tinham fama de serem curandeiras.
Referindo-se à Fonte Monumental, enquadrada num espaço ajardinado em forma de “U”, Túlio Espanca dá relevância à sua beleza arquitectónica,  chama a atenção para o pavilhão situado ao centro, cujo fontão ostenta, entre outros motivos decorativo, datas marcantes da obra e da sua construção. Quem visita aquele espaço consegue ainda ler no fontão o monograma de R. E. G. seguramente referente à família Gião.
Dum lado e doutro do pavilhão, quatro grandes painéis de azulejos, envoltos por molduras do estilo rococó, decoram os espaçosos bancos de repouso. Os desenhos dos painéis representam as estações do ano e tudo leva a crer que o magnífico trabalho de olaria foi produzido em Lisboa, na Real Fábrica do Rato.
Pedimos para aceder ao interior do pavilhão. Já não nos recordávamos da forma como estava decorado. No interior do edifício octogonal, com revestimentos de estuque e pinturas a fresco, estão representados os quatro Apóstolos Evangelistas. Ao centro, por baio de uma lanterna, vê-se uma taça de mármore branco e friso de azulejos.
Interrogamo-nos acerca do nome Quinta da Asneira. O nosso cicerone despertou-nos a atenção para um detalhe bem curioso. A imagem do leão que devia estar junto a S. Marcos, está representada, por lapso de quem pintou, aos pés de um outro Apóstolo. Será aqui que reside a “asneira”? Há quem admita essa possibilidade.
Bem! São horas de rematar estas Memórias Curtas. Começamos por falar de presépios, evocámos os nossos avós paternos e acabámos por nos centrar na Quinta da Asneira.
A espiral ou o emaranhado de redações podiam muito bem continuar. Apetecia-nos por exemplo recuar aí uns sessenta anos e viajar até à antiga Rua da Cadeia, à casa da avó Mariana e do avô Zé Guita. Se fosse possível gostaríamos de recuperar os serões passados ao lume da chaminé ou à braseira, ouvir a história fantástica do Touro Azul ou visionar as sombras animadas que o nosso avô, servindo-se apenas das mãos calejadas e da luz do candeeiro a petróleo, conseguia projectar na parede. No ar espalhava-se o aroma do café que saia da chocolateira e o cheirinho a castanhas e bolotas assadas na braseira.
E é com estas doces recordações que desejamos a todos os estimados leitores um Feliz Ano Novo.
Até 2020
Vitor Guita
In Montemorense – Dezembro 2019

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