Os boatos
O Ildefonso ia sempre vestido com as vestes de pastor,
quando por qualquer motivo de deslocava á aldeia. Naquele dia necessitou de ir
"aviar a casa", e, na mercearia aguardou a sua vez. Nesse tempo de
espera, ouviu uns boatos referente ao Monge-Mor, á mãe da Pureza e da filha. O
boateiro ignorou o pastor, cuja fama de homem rude e inculto já adquirira, e,
dando largas á mentira, disse, referindo-se ao Monge: - Primeiro levou a filha, agora está a tentar levar a mãe -.
Com efeito, o Monge falara com a mãe da Pureza, para livrar
a sua responsabilidade na questão do namoro, e, esta não mais pode fazer, que
legar essa responsabilidade no Monge, depois deste a tranquilizar com as boas
qualidades e origens do jovem Ildefonso.
O
Monge-Mor vai á igreja de Nossa Senhora da Conceição Fonte Santa.
A pedido dos noivos o Monge vai a caminho da Ermida da Fonte
Santa falar com o padre.
Desce o Lucefecit, cujas águias cristalinas corriam a
caminho do Guadiana, num sussurrar melodioso, que se associava ao canto das
rolas e perdizes chamando as suas crias. O ar inundava-se de aromas,
gentilmente, cedidos pelas flores das estevas e dos rosmaninhos. O Monge-Mor,
no seu enlevo cerebral, julgou-se, por momentos, fazer parte daquele quadro natural.
Ele cantava, assobiava, gesticulava num enlevo total.
Chegado á Igreja tem a esperá-lo o padre, que lhe
confidencia os boatos, que lhe chegaram aos ouvidos, muito em segredo, pelos
seus crentes.
-
Irmão, toda a aldeia da serra sabe, que falei com a mãe da Pureza, algumas
vezes, tinha que falar, pela responsabilidade que tomei perante ela, acerca da
filha, que me é muito querida, e, que agora apadrinho o namoro e o seu próximo casamento.
Será crime fazer o bem e gostar de uma pessoa?
O padre ficou chocado com as palavras sentidas do Monge.
-
Não irmão, não é. E se eu puder ajudar essa moça no seu casamento, conte
comigo. Além do infortúnio da perda de visão, ainda tem que suportar os boatos
dos mal-intencionados. Vamos tentar que essa difamação, não chegue aos ouvidos
da menina, nem da mãe. Disse
o padre tentando conformar o Monge-Mor.
O
desejado Domingo.
No próximo domingo em que os noivos se avistaram, foi-lhes
dada a notícia pelo Monge, que o padre os casaria no menor tempo possível. Este
recusou os agradecimentos dos noivos, o seu semblante denunciava uma estranha
tristeza, que começou a inquietar os jovens. Ildefonso sabia a causa dessa
tristeza, mas não o dava a conhecer, porque muito honestamente não acreditava,
e, convidou o Monge-Mor, para padrinho em parceria com a estudante de Estremoz.
O Monge recusou, muito embora lhe agradasse ir ao casamento nesse lugar.
A Pureza fazia questão de levar a família como padrinhos, a
mãe e os irmãos.
O
Jovem Ildefonso pede a mão da Pureza.
Cada dia que passava o Jovem Ildefonso, menos crédito dava
aos boatos que ouvira na mercearia. Tinha agora, ao falar com a mãe da noiva, a
oportunidade de os confirmar ou desmentir.
A casa da mãe da Pureza era composta de dois compartimentos,
modestamente, mobilados.
A senhora mandou entrar o jovem com extrema cortesia, e este
apresentou-se.- Sou o pastor do Monte da
Boa Vontade, o senhor Monge-Mor, certamente, já vos falou de mim. - A
senhora atalhou, - Mas os donos do Monte
já morreram, - Disse a senhora surpreendida. - Sim, mas fui o herdeiro e agora sou dono. - Disse o rapaz
sorrindo para desfazer a incerteza do cérebro da senhora, e continuou. - Venho pedir a mão da sua filha, da Pureza.
Tencionamos casar muito em breve. A senhora entristeceu e disse baixinho. - Não tenho posses, o que ganho vai dando
para a despesas do dia-a-dia e pouco mais. Tenho algum ouro que irei empenhar,
embora os juros estejam altos, é a única maneira de poder casar a minha filha,
e, tenho muito prazer que ela case convosco
- Não. - Quase
gritou o Ildefonso. - Tudo decorrerá no
Monte da Boa Vontade. De vós só quero que auxilie a Pureza a adaptar-se á nova
vida, á vida de lavradora. E, mais vos digo, que num futuro próximo, os seus
dois filhos irão trabalhar para a herdade.
A senhora com lágrimas nos
olhos não sabia o que fazer, limitou a dizer: - Sejo o que o Ildefonso quiser.
O rapaz partiu, duplamente
contente e ciente que tudo o que ouvira na mercearia era falsidade, e, comovido
pela frontalidade da senhora, que se disponha a sacrificar o seu ouro para
poder casar a filha.
O desgosto do Monge-Mor.
Um estranho abatimento se
apoderou do Monge. Quase deixa de comer e evita falar com as pessoas, sobretudo
com a menina Pureza. Recolheu-se na cela, e, em meditação, pediu auxílio a
Jesus Cristo. Era um amor diferente do que Cristo teve por Maria Madalena, mas
nunca deixara de ser amor. O Monge sentiu sempre um amor meio paterno pela menina
que criou e educou, e que agora, apoiara, sem reservas, não só o namoro, como o
casamento. Após demorado silêncio num gesto feroz, gritou: NÃO. O seu semblante
alegrou-se. Beijou Jesus, e, decidiu ir ao casamento, ser padrinho.
O milagre.
Na igreja de nossa Senhora
da Conceição da Fonte Santa,
começara a cerimónia do casamento. No altar o Ildefonso esperava a noiva,
acompanhado pela madrinha, a estudante de Estremoz. A Pureza estava
encantadora.
O vestido cor-de-rosa, muito leve, evidenciava-lhe a silhueta e o
vulto dos seus seios. O cabelo caía encaracolado nos seus ombros, meios
descobertos. Caminhava acompanhada pela mãe e dos seus dois irmãos, de passada
firma para o altar, sem nenhuma hesitação. Dir-se-ia que via, ou que estava já estava
habituada a andar naquele piso.
De repente, como vindo de uma
aparição celestial, surge o Monge-Mor.
Sem perda de tempo quatro vultos saem, precipitados, da igreja, sendo
observados pelo jovem noivo, o Ildefonso. O Monge todo vestido de branco, de
barba grisalha e sorridente, disse: - Vim
para ser o padrinho do Ildefonso.
A Pureza tenta apressar o
passo, mas tropeça e cai de joelhos. Sente uma dor diferente de todas as outras
que até então tinha sentido. A dor do sentimento de contentamento fá-la levar
as mãos ao rosto e quando o descobre, dá um grito - Vejo, voltei a ver. Olha o meu Ildefonso, a minha família, o meu
protetor, o Monge-Mor.- A rapariga não cabia em si de contente. O mundo
estava, novamente, com ela. Ao ver o noivo, que só vira de pelico e safões,
disse, suavemente, - O meu pastor sem as
peles é muito, muito mais bonito e elegante - O Ildefonso abraça e beija a
noiva. Segredando-lhe, - Mas amor, sou
sempre o mesmo a gostar muito de ti.
As lágrimas banhavam o
rosto de todos os presentes, e, os soluços, naquele momento, abafavam
o sussurrar das águas do Lucefecit.
O padre tentava reivindicar
o milagre para nossa Senhora da Conceição, o que era discordado pelo Monge-Mor,
muito mais perto da família da Pureza, afirmando que fora Jesus Cristo que o
acompanhara desde a cela, até à igreja e fizera o milagre.
A herdade da Boa Vontade,
com os irmãos da Pureza, tornou-se a herdade mais produtiva do Concelho do
Alandroal.
Percorremos a serra d'Ossa,
a nossa serra, de lés a lés, e tivemos a sorte de encontrar, um velho pastor de
cabelos lisos e compridos, com a barba grande, de olhos e boca encovados, com
voz roufenha e muito morosa, que nos confirmou, tim- tim, por tim- tim, com
todos os pormenores, a existência da herdade da Boa Vontade e do pastor
Ildefonso.
Nós autores, ficámos muito
felizes com o desenrolar deste acontecimento, sobretudo com a recuperação da
visão da menina Pureza e da felicidade do jovem Ildefonso, e, perdoo-nos Nossa
Senhora da Conceição da Fonte Santa, também, acreditamos, como o Monge, pelo
sentimento amoroso deste conto, que fora milagre de Jesus Cristo.
O crime cometido pelo
Monge-Mor foi fazer o bem e inundar de felicidade toda aquela família, e, o seu
julgamento foram as lágrimas de alegria da recuperação da visão da menina
Pureza.
Hélder Salgado
Terena. 02-01-2020.
2 comentários:
Gostei!
JR
Não desgostei embora no papel de leitor habitual pudesse dar-se o caso de
ter gostado mais. De facto, estes milagres cristianos, jamais aconteceriam
se não tivessem a oportunidade e a sua vez extensiva de serem vistos e
aqui contados.
Os meus Cumprimentos
ANB
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