Sempre que pensamos nesses velhos estabelecimentos,
assalta-nos o cheiro das iscas, do coelho frito, das pataniscas, das fritadas
de peixe e, claro, da atmosfera vinícola tão tipica das adegas.
A certa altura pusemo-nos a contar as tabernas que existiam
em Montemor, décadas atrás, praça a praça, rua a rua, travessa a travessa. Só
num brevíssimo relance, contabilizamos mais de trinta: Chico Caldeira, Chico
Guerra, Chico Enjeitado…
Da taberna em frente à casa onde vivíamos há muitos anos, na
antiga Rua da Cadeia, guardamos imagens muito nítidas do taberneiro e amigo
José Ferreira (Zé Galego), das bojudas pipas e selhas de madeira, dos copos de
três ou de cinco em vidro grosso. Vêm-nos à lembrança as gaiolas suspensas nas
paredes, onde se baloiçavam e trinavam gorjeios os pintassilgos e canários.
Conseguimos ainda revisitar os rostos, os gestos e os diversos timbres de voz
dos clientes que batiam a sua cartada à sueca, à bisca de nove ou à bisca
lambida. Muitos preferiam o jogo da ronda: “tenho
uma ronda! E eu um rondim!”.
Um dos nossos passatempos preferidos de infância e parte da
adolescência era acompanhar o amigo Manuel dos Santos, montado em cima da carroça
do armazém, quando havia distribuição de artigos de mercearia pelos retalhistas
da vila. O amigo Manuel deixava-nos criar por breves instantes, a ilusão de
sermos cocheiros de verdade, autorizando-nos a pegar no chicote ou nas rédeas
do possante cavalo russo. Quando a entrega de mercearias era feita em tabernas,
havia sempre a fundada esperança de sermos obsequiados com um petisco ou
qualquer guloseima. A nossa iguaria preferida era um naco de pão coberto com
umas garfadas de atum que o taberneiro tirava de grandes latas de conserva.
Manuel dos Santos era popularmente conhecido por “Manel
Sacristão” devido ao facto de seu pai ser quem zelava pela Igreja de São
Mateus, quem enterrava os mortos e assistia à missa. Na vila ninguém ficava
indiferente ao nonagenário sacristão, muito curvado, sempre que ele aparecia na
sua carrocita. Alguns dos irmãos de Manuel dos Santos trabalharam atras do
balcão de uma das mais conhecidas tabernas de Montemor e que tinha o sugestivo
nome de Irmãos Unidos. À primeira vista parece tratar-se de uma Ordem Religiosa
ou de uma Confraria, mas era assim que era conhecida a taberna situada na
antiga Praça Velha, na esquina que dá para a rua do Sacramento e para a rua das
Farizes, ruas, que por vezes, até não damos conta da sua existência.
Na falta do nosso saudoso amigo Manel, decidimos ir à
procura de quem nos ajudasse a fazer o historial do velho estabelecimento, de
preferência alguém que tivesse ali trabalhado.
Tivemos a sorte de encontrar Joaquim Manuel dos Santos
Barreiros, que esteve atrás do balcão dos Irmãos Unidos durante vinte e tal
anos, antes de ter de rumar, como sucedeu a milhares de portugueses, para
terras de França. Os ainda rijos 87 anos, bem como o facto de ser sobrinho dos
irmãos Santos, fizeram dele o nosso interlocutor perfeito.
Falemos, então, da taberna. Tudo começou alguns anos após o
violento ciclone que assolou o país em 1941. Em Montemor houve casas
destelhadas e outro tipo de danos.
Baltazar dos Santos, que tinha, na altura, um comércio no
Cartaxo, adquiriu o edifício da Praça Velha onde abriu a taberna, tendo chamado
para ajudar e orientar o negócio os seus irmãos Filipe e João dos Santos. O
conhecimento que tinha da região do Cartaxo e de outras zonas vitivinícolas do
Ribatejo ajudou o comerciante no negócio das bebidas, fazendo chegar
regularmente a Montemor volumosos cascos com centenas de litros de vinho.
Os Irmãos Unidos, alem de servirem ao balcão, abasteciam
outras tabernas da vila, não só de vinho mas também de cerveja. Quem por ali
hoje passa dificilmente consegue imaginar a quantidade de pipas e barris que
havia no interior da casa, já para não falar dos depósitos de cimento com
milhares de litros de vinho e aguardente.
Na parede em frente da taberna, na parte mais baixa do
largo, situava-se a loja do João Quintas e a barbearia do Ernesto Moreira, mais
tarde do Ademar Baião.
Os Irmãos Unidos abriram portas num corredor de passagem bem
movimentado, que dava acesso entre outras coisas, à Escola Conde de Ferreira,
ao lagar de azeite da família Cunhal e ainda à conhecida oficina do Soeiro,
onde foi forjada grande parte dos gradeamentos de ferro que, ainda hoje,
ornamentam portas e janelas da nossa cidade.
A proximidade da oficina fazia com que acorressem à taberna
clientes, ferreiros e serralheiros. O fecho de um bom negócio era óptimo
pretexto para se beber um copo e comer um bom petisco.
Também na antiga Praça Velha, bem como na vizinha Praça da
Hortaliça, era hábito, sobretudo aos Domingos, juntarem-se magotes de
trabalhadores rurais que vinham ali à procura de manajeiros que lhes dessem
trabalho na apanha da azeitona, na ceifa ou noutros trabalhos do campo. Muitos
dos rurais acabavam por engrossar a freguesia da taberna.
Em altura de feiras a casa tornava-se exígua para dar de
comer a tanta gente que ali ocorria. Algumas vezes foi necessário arrendar
espaços contíguos. A taberna dos Irmãos Unidos ficava muito perto do velho
mercado do peie, na Praça Velha. Enquanto o novo mercado municipal não abria ao
publico, havia à porta da taberna um fogareiro acesso onde se podia por uma
sardinha a assar ou outro pescado.
Passaram vários anos. Em 1971, Custódio José Tobias comprou
o edifício onde viria a instalar um Mini-mercado bem recheado de frutas,
hortaliças, mercearias… Havia também venda de pão, peixaria e talho. A esposa e
a filha do amigo Custódio Tobias ajudaram-nos a recuperar algumas memórias da
casa e testemunharam-nos a existência de grandes depósitos de vinho e de peças
de madeira que restaram do que foi a antiga taberna. Cerca de vinte anos mais
tarde, em 1992, o Mini-mercado fechou as suas portas.
Antes de terminar estas nossas Memórias, deixe-nos confessar
que, alem das influências do S. Martinho, o que deu azo a esta nossa conversa
acerca do vinho, das tabernas e taberneiros, foi a leitura de uma das mais
geniais peças de teatro de Gil Vicente, que tem por título O Pranto de Maria
Parda.
A vinha e o vinho estão abundantemente presentes na
literatura e nas artes em geral. Ao longo dos tempos vários têm sido os
escritores e outros artistas que se ocuparam da temática do vinho e das suas
relações com o Homem, umas vezes exaltando o prazer provocado pela sua ingestão,
outras vezes satirizando a incontinência dos bebedores incorrigiveis.
A conhecida farsa de Gil Vicente fala de uma mulher, bebedoura
inveterada e sem dinheiro, que se lamenta da escassez e do preço do vinho, não
conseguindo que lhe fiem uma canada que
lhe mate a sede.
Eu só quero prantear
Este mal que a muitos toca, que estou já como minhoca
Que puseram a secar.
Triste, desaventurada,
Que tão alta está a canada
Para mim como as estrelas;
Ó coitadas das goelas, Ó goelas a coitada!
Depois de se referir às tabernas de Alfama, da Ribeira, da
Mouraria e de outros lugares de Lisboa onde costumava saciar-se, Maria Parda
dirige-se às taberneiras e taberneiros, pedindo que lhe vendam vinho fiado. Desesperada
com tanta resposta negativa, a mulher confessa.se disposta a morrer de sede,
não sem antes deixar testamento.
Assim que por me salvar
Fiz este meu testamento
Com mais siso e entendimento
Que nunca me sei estar
Chorai todos meu perigo,
Não levo o vinho que digo,
que eu chamava das
estrelas.
Agora me irei pr´aelas
Com grande sede comigo.
E pronto amigo leitor! Tambem nós lamentamos ter de ficar
por aqui.
Vitor Guita
In Montemorense – Novembro 2019
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