As Leis da Nação - I
É encontrado um bebé recém-nascido num contentor do lixo. Investiga-se. Descobre-se que a mãe é uma jovem de vinte e poucos anos, sem-abrigo, só, desprotegida. O Estado toma providências para que o bebé seja tratado o melhor possível, como seria evidente, e toma providências para que se enfie a mãe na prisão. Tem de ficar em preventiva, acusada de homicídio na forma tentada, diz a lei.
A lei é fria e não consegue varar as pessoas até lhes chegar à alma*. A lei é crua e só admite excepções para quem bem o legislador e a Assembleia da República entendem. A lei, desta vez, também não protegeu quem mais precisava. Para esta mãe, sem-abrigo, só, desprotegida, não houve qualquer regime de excepção. Ninguém se lembrou de a enviar para uma associação adequada ao seu perfil e às suas necessidades, até ser altura de ser confrontada com todo o calvário de um processo judicial. “Não se deve atirar pedras”, referiu uma indignada Manuela Eanes, em defesa da jovem, quando questionada sobre este caso, mostrando a sua total discordância em relação à forma como tudo está a ser conduzido. E tem razão a ex-Primeira Dama.
E a família desta jovem mulher? Qual o seu grau de responsabilidade neste seu gesto desesperado, nos motivos que a levaram a viver a vida passada na rua, sem qualquer esperança no horizonte? E o pai do bebé? Qual o seu grau de responsabilidade, quando a jovem dá à luz o seu filho e o abandona à morte certa? Hoje, já não é impossível saber-se quem é pai de quem. E, por isso, também ele deveria ser chamado e ouvido. Vi o Presidente da República a abraçar, comovido, o senhor, também ele sem-abrigo, que salvou (e, depois, parece que não foi ele) o bebé recém-nascido. Não vi o Presidente da República a abraçar a jovem mulher, só e desprotegida, e em óbvio sofrimento físico e psicológico.
E qual é, afinal, o papel do Estado? Apenas prender uma mulher de vinte e poucos anos, mãe recente, só e desprotegida. Apenas e só. Que se saiba, ninguém ainda se preocupou, pelo menos publicamente, com o porquê daquela atitude que muitos classificam como criminosa, se estivermos de acordo com a lei dos homens, mas que merece uma séria investigação por uma equipa multidisciplinar, que tente saber o porquê de tudo o que aconteceu até ao parto, momento dramático e de contornos indescritíveis. Esta jovem mulher, que poderia ser filha de qualquer um de nós, tem, com toda a certeza, uma história de vida pouco invejável mas que, a ser devidamente analisada, iria ajudar os habituais polícias da moral e dos bons costumes a perceber e a ajustar a pena a aplicar à mulher que, infelizmente, irá ficar sem o seu filho.
Não será o eventual encarceramento que vai resolver os problemas desta mãe. Nem os de outras mães em igual caso de desespero.
*Obrigado, F. Pessoa
João Luís Nabo
In "O Montemorense", Novembro de 2019
1 comentário:
OBS.
Acredito que o Prof. João Luis Nabo (nos) vai aceitar dizer que este
caso é uma reactualização do que sucedeu, há uns tempos, na Amadora.
Viviam as 2 Meninas com os Pais em condições miseráveis. Quando o caso
rebentou e veio a publico e os poderes de Estado tiveram que agir, o que
é que a Polícia fez? Chegou lá,aquele antro, teve ordens e prendeu os
pais...
Foi assim, o que me leva a concordar com o contexto aqui exposto
por JLN. Diria ainda que se vai notando cada vez mais que " em Portugal
se confunde um bocado o papel das Leis com a Justiça".
Por outras palavras, temos a impressão que há "Leis a mais e Justiça
a menos"...isto para não estar aqui a dizer outras coisas.
Será assim, caro JLN? Ou continuamos quase todos envoltos num manto
diáfano de hipocrisia social com culpas graves para quem somos e
como (não) devia agir a nossa comunidade de portugueses. Onde
nascemos.E onde afinal vamos também acabar.
Contudo menos, bastante menos, livres à pala cega de certas leis, de
certas grades e, claro, de certas prisões.E dos seus fautores! Isto
visto que,por certo, estas leis ainda não nos caíram em cima vindas
apenas acompanhadas da chuva e de antigos céus cinzentos.
Saúdo-o
Antonio Neves Berbem
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