terça-feira, 5 de novembro de 2019

O HELDER RELEMBRA…


Saudades
Da saudade de voltar a escrever as minhas pequenas crónicas como, num passado recente, o fiz no Al Tejo.
Foram tentativas em que achei, por bem, homenagear figuras que, de certo modo, marcaram a sua época, com os seus ditos, tristeza e alegrias, com as suas privações e a maneira como as superavam, a sua postura condizente com a sua honestidade, enfim, que com os seus modos de vida, nos legaram uma herança sólida e salutar, que muitos de nós, absorvendo-a, soubemos transmiti-la aos nossos vindouros.
Algumas comentadoras achavam as crónicas extensas, mas a minha maneira de escrever, para expor algo com princípio e fim, só mo consentia assim.
Não pensem que estive parado, sem escrever. 
Não se matam vícios com a inatividade, mas sim alimentando-os, e, para mim escrever é um vício cerebral, que o meu corpo, o meu ser, é forçado a alimentá-los.
Tenho finalizado três livros, e estou prestes a finalizar o quarto. São de leitura extensa, de muitas páginas, cuja argumentação chega a ser comovente, tentando predispor sempre o leitor para o episódio seguinte.
Classifiquei, na minha modesta concepção, um dos meus livros, a "Mina da Juliana", de drama. Livro de ficção pura.
Ao reler a maioria das crónicas, escritos e histórias, publicadas no Al Tejo, e, agradecido estou ao meu amigo Francisco Manuel, surgiu-me a ideia de explicar o porquê das suas feituras.
Muitas das pessoas que descrevi, mal as conheci, e, por isso, tive que imaginar as suas vidas, tentando sempre dar-lhes um colorido, engrandecendo-as, e, um mais bonito final.
Outras, embora ainda novinho, conhecias de perto, o que me levou, algumas vezes, á saudade, á comoção até mesmo às lágrimas.
Recordo-me que comecei a escrever, em comentário, acerca dos "Ofícios" que o F. Manuel publicou de outro Blogue.
Não pretendo, de modo algum ser repetitivo, ou escrever sobre aqueles que menos me esforcei, tal como o ferrador, que aprendiz fui, no meu princípio de vida.
Escrevo sobre a curiosidade que me levou a observar os preparativos que o Abegão e Ferreiro condicionavam para finalizarem as rodas dos carros de parelha e singelos.
Que me recorde só observei uma vez. Ignoro se já em tempo de escola.
Era muito pequeno e aquele arraial de preparativos ia-me gradualmente impressionando.
Morava perto do largo onde as rodas eram finalizadas.
Primeiro apareciam excrementos - bóstas - de gado vacum, depois aparas de madeira, em pequena quantidade, os aros, rodas em ferro e finalmente a roda em madeira, com os respetivos raios cravados num cilindro protegido com pequenas rodas de ferro.
E foi tudo isto que retive na memória, até um dia em "Os Ofícios", no Al Tejo, mo fez soltar da minha prateleira memorial de recordações, e, em comentário pude partilhar convosco.
"De menino poeta e louco todos nós temos um pouco"
Um dia já nestas andanças da escrita, derivei para a poesia.
Não consegui contornar a saudade, e, foi levado a exteriorizar episódios que me fizeram recuar há minha juventude, ao colégio Diogo Lopes Sequeira, homenageando colegas e professores, num poema que chamei:"Tempo de escola e de colégio".
Outros ataques de saudade levaram-me a versar, tendo sempre em conta a nostalgia de um passado ou de algo que me foi querido, e assim surgiu o poema "Amar além da morte", hoje musicado pela Tuna da Universidade Europeia - TUE, com o nome de "Perdido de amor".
Mas vamos ao verdadeiro fim que em vista tive, de explicar o porquê, da minha escrita.
A Sebenta.
Não houve sebenta nem escrito nenhum.
Conheci o Parente, o protagonista da história já em idade avançada, e, por ter um feitio de picardia, não foi pessoa da minha simpatia.
Nunca com ele falei, contudo, a verdade da cedência do galinheiro pela Dona Maria Godinho, ter-me-á sensibilizado para imaginar uma história que julgo bonita e comovente. Naturalmente os primos, a Chica, o Quim, a Zézinha e a São (é a minha filha), coprotagonista da história, existem e estão vivos, Foram eles que indo puxando (na história) pela minha imaginação, me lavaram a dar um tom sempre elevado ao protagonista, ao senhor Parente, revelando um final místico e trágico.   
 O Zé Borrão.
Quando escrevi sobre o Zé Borrão, sabia muitas peripécias dele, conheci-o bem, (era frequentador da oficina de meu pai), apesar de mais velho, até estive em casa dele, em Almada. Depois regressou a Terena onde veria a falecer.
Era uma pessoa simpática, brincalhona e algumas vezes excedia-se nas brincadeiras, o que levava algumas pessoas a acharem aquelas de mau gosto. Apenas uma só vez, o acompanhei na pesca, e, fiquei ciente, que até aqui reinou uma malandrice, que residia na tiragem do peixe das malhas da rede.
Eu tinha uma enorme curiosidade em vê-lo pescar, advinda do meu tio Peças, que o acompanhou muitas vezes e me relatava os procedimentos do Zé Borrão.
Quando mergulhava enchia o peito de ar, e entrava na água a prumo, depois emergia com três peixes, um em cada mão e outro na boca. Com o tresmalho as pescarias requeriam a observação das correntes da água, cujas redes, normalmente, ficavam enviesadas, mas de modo a atravessar o pego, de margem a margem, para que o peixe ficar sem alternativa de fuga, quer de um lado quer de outro.
Eu era muito novo ainda, sem nenhuma experiência daquelas pescarias, era a estreia, e, colocaram-me a receber as redes vindas da água. 
Á medida que as iam puxando e tirando o peixe, iam sendo enroladas nos meus braços. Não me recordo quantos metros tinha o tresmalho, mas recordo-me do grande peso que os meus braços suportaram, até que o tio Ramalho, me substituí-o por me estar a ir abaixo. As malhas encharcadas em água, as boias, os pesos e as cordas, associadas á metragem do comprimento do tresmalho, não era brinquedo para a idade e a força do Hélder. Foi mais uma pirraça do Zé Borrão, entre as muitas que fazia, não ficando impune, pois também caía nalgumas.  Leia no "Al Tejo" Um dia com o Zé Borrão.
Era, sem dúvida alguma, um excelente companheiro.
 A morcela do Caritas.
Ouvi muitas vezes a minha avó paterna, Joaquina, no monte, no Alandroal repetir este dito "é como a morcela do Caritas não se comendo dá para toda a semana".
Na minha opinião este dito tem uma certa relação, com outro dito, também muito falado na altura, "guarda comer e não guardes que fazer", que traduziam as necessidades da época.
Antes de escrever a crónica comuniquei que o ia fazer à Bernarda Caritas, mas pela distância de tempo em que reportei a crónica e a sua publicação, não o pude fazer a outra personagem que dela também fez parte, uma moça do Monte Abaixo. Durante muito tempo foi minha preocupação saber o paradeiro da moça, hoje mulher, claro, o que consegui recentemente, indo ao seu monte, levar-lhe o escrito. Foi bonito e recordativo, após tantos anos, a nossa nova aproximação, e, eu dei por finalizada aquela minha já longa preocupação.
 Bota cá licença.
Acabo de fazer um esforço de memória para me recordar como me apareceu o motivo de escrever este escrito. Não consigo lembrar-me, e até fico espantado comigo, por não o conseguir. Não é em mim comum qualquer esquecimento da época da minha meninice ou adolescência.
O certo é, que penso ter conseguido trazer para atualidade, um uso que jamais se repetirá, nem na aldeia das Hortinhas, nem no Concelho, e, isso já mereceu o meu esforço.  
 O Boa Tarde 
Foi gratificante escrever sobe este rapaz. Pessoa correta, bem-falante e sempre bem-disposta. Dava gosto conversar com ele, pela sua contagiante alegria e boa disposição. Vinha muito à oficina de ferrador de meu pai, para cortar os cascos do burro que possuía. Ferraduras não era com ele.
Numa ocasião negociaram um cão, o "bailarico", excelente para caçar coelhos. Um dia aos rés do Guadiana, na herdade da Defesa apanhou nove coelhos seguidos.
Num certo dia perante mim e o Manelito Salomé, em Terena, vindo o Boa Tarde a fumar, o ourives puxa do lenço de cor branca e pede ao Boa Tarde para expirar para o lenço, uma, duas, três vezes, o lenço naquele sítio ficou amarelo.
Diz o Manelito Salomé - é assim que os teus pulmões vão ficar - , o Tonho Boa Tarde apenas sorriu. Nessa altura, por vezes, não muitas, já subtraía um macito de cigarros, lá da loja, paris ou higlife. Refleti nas palavras do ourives Salomé e deixei de o fazer.
O Boa Tarde tinha uma especial vocação para negociar, (claro negócios fracos,) e, aí residia uma parte, muito pequena, da sua sobrevivência. Um dia contratou-se (segundo testemunha que com ele lidou nunca fazia contratos, nem escritos, nem verbais, ia ficando nos montes) para pastor e foi, injustamente, acusado de pactuar com os ladrões de borregos, que foram roubados de rebanho á sua guarda. A sua moral, de homem sério e honrado, foi afetada de tal modo que o Boa Tarde não consegue recuperar, perdendo a vivacidade que sempre usufruía, vindo a morrer por enforcamento. Na freguesia de Terena e no Concelho, todas as pessoas que conheciam o Boa Tarde, mostraram a sua indignação, pois ninguém acreditou que o Boa Tarde pactuasse com ladrões ou até mesmo com desordeiros.
Na questão do fumar estou grato ao Boa Tarde e ao ourives Manelito Salomé, pois ambos contribuíram para que eu, logo muito cedo, não adquirisse aquele vício.
O velho Aperta.
Quando escrevi o "Velho Aperta, a história de um tocador", foi uma reminiscência dos meus, dez, doze anos.
Ia a caminho da oficina de ferrador de meu pai, na tapada da Vinha, quando ouvi um tocar. Estava o Senhor Tónico Aperta, a tocar harmónio, na taberna do Silva, na Rua João Anastácio Rosa.
Por entre os homens consegui furar o ver o senhor tocador. Tinha a pálpebra do olho esquerdo descaída deixando ver o vermelho da sua parte interior. Assuste-me e fui-me embora, ficando para sempre com aquela imagem na memória.
Em 2008, quando comecei a escrever, a imagem do Tónico Aperta, veio-me ao sentido, e, não tardei a escrever a crónica. Mas aqui reside a minha interrogação, Terei saudades de ter escrito a crónica ou saudade dos meus verdes anos? Ou de uma coisa e outra?
Foi nessa idade que comecei a trocar olhares com uma mocita, que o meu coração começou a sentir um sentimento diferente de todos os outros que até aí tinha sentido.
Penso e até já me deram a certeza, que a crónica tinha um lindo sentimento amoroso, e, aqui, confundi-me se serei eu o autor ou o protagonista. Obriga-me a refletir e a decidir-me entre um e outro. O senhor Tónico estava, no imaginário, apaixonado pela Bia Figueiras e eu estava a começar a apaixonar-me pela mocita que mais me agradava e maior bem lhe queria. Mas havia uma diferença entre mim e o Tónico Aperta.
Ele tocava harmónio e eu não. Limitava-me a assobiar, mas este som tinha um fim especial, dar-me a conhecer onde estava, á moça por quem sentia um sentimento muito especial, um grande bem-querer. O Tónico dava-se a conhecer, pelo som do seu harmónio a todos em geral, e, eu só aquela pessoa.
O Zé Laro.
Por estranho que pareça foi a pessoa, além da família que mais gostou de mim. Logo em pequeno eu ia para a oficina de ferrador, de meu pai, e, lá estava quase sempre o Zé Laro.
Tinha um burro que pastava, junto às éguas na Tapada da Vinha, aonde se situava a oficina.
O Zé Laro tinha um defeito num pé. Estava sempre inchado por má circulação, e, penso que esse defeito, o inibia de fazer trabalhos pesados. Fazia uns "biscates" de pouco esforço, e, assim os proveitos entrava pouco em casa. Pensa-se que a esposa, a dona Violante, ter-se-á suicidado, devido às dificuldades de sobrevivência.
Tiveram um filho que se recolheu a um hospício, vindo só a Terena, para recolher o pai já no final da vida.
Muitas vezes o meu pai lhe trazia uma "Bucha", pão, com um pedaço de carne ou queijo e azeitonas.
O Zé Laro tornou-se uma pessoa querida do meu pai e do meu tio Peças, o pai do meu primo Bráulio, daquelas pessoas com que se convive todas as manhãs, todas as tarde, todo o dia, e, nesse sentimento eu, muito novinho, fui envolvido.
Envergonhado e pouco falador como eu era, e parece que contínuo, logo o Zé Laro me alcunhou de "sério". Claro que não importei e se me importasse ganharias as mesmas. Como contrapartida eu e o João Lobo, começámos-lhe a chamar Bandita Neru, o ditador da Índia. O Zé Laro, também não se importou 
Logo de pequeno habituei-me ao seu feitio e aos seus modos.
Quando parti para Lisboa e Zé Laro continuou na tapada da Vinha, com o seu burro junto às éguas, e, quando vim de férias, depois de uma grande ausência, encontrei-o no café do meu tio Peças  onde hoje se situa a farmácia.
O Zé, ao ver-me, no meio de um grande contentamento, cumprimenta-me com um abraço, dizendo "Olha o meu Sério".
São pequenos nadas que representam muito, numa indestrutível amizade, só separada pela morte do Zé Laro, e, foram estas nadas, que mo fizeram recordar.
Uma casa no Alandroal (ou Monte do Zé Godinho, no monte Outeiro, nas Hortinhas)
O que me levou a escrever esta história, a mais real de todas as outras histórias, foi a simpática figura do Zé Godinho com todos os seus envolventes agrícolas.
Adorava conversar com ele, cujo tema era a sua labuta, e os seus divertimentos, que encarava sempre com boa disposição, e, ele adorava que eu o visitasse.
Levava-lhe sempre algo escrito, que ele não acredita que eu o tivesse feito, e, eu respondia-lhe que tinha razão, não fui eu, foi o Hélder, respondia-lhe. Olhava para mim silencioso, para depois desatar a rir, fazendo-me rir também.
Era uma verdadeira alegria conversar com ele, e, ele sentia necessidade de conversar, para se libertar um pouco da nostalgia, de que foi condenado, passar o resto da vida agarrado a uma garrafa de oxigénio.
Nesta história consta a minha reflexão sobre as touradas de antigamente. Um dia, em Estremoz o António Garçoa, então peão de prega do cavaleiro Mestre Batista, ofereceu-me um bilhete de segunda fila. Vi o sangue do touro a escorrer devido às farpas e impressionou-me.
Logo ao sair da praça acudiu-me ao cérebro este sentimento. Nunca mais assisto a corrida.
Até hoje, caros leitores, não mais o fiz, nem farei.
Daqui emerge "A última tourada do Castelo de Terena", constante na referida crónica.
Lembram-se da Catarina?
A Catarina Figueiras, de Montejuntos, foi uma colega do externato Diogo Lopes Sequeira, durante, apenas, um ano. Era moça alegre e comunicativa, que irradiava simpatia. Tive a sorte de comunicar muito com ela no circuito Cacilhas Lisboa, no barco.
Já não era a mesma moça.
O filho tinha morrido e ela parecia entregar-se ao desgosto.
Passado algum tempo, passei junto á Igreja de São Roque, onde algumas vezes vira entrar a Catarina. A Catarina morrera, pouco depois. Um sentimento afetivo em relação à Catarina, daqueles que nos fazem apertar o coração, tomou conta de mim, e, eis que surge, o que eu penso ser, a mais bonita homenagem, por mim expressa, mesmo a título póstumo..
Assim eu vi Rufino Casablanca.
Forçoso será recordar essa grande figura Alandroalense, o João Ribeiro ou João Regatão. Nos tetos de Rufino Casablanca, textos de grande imaginação literária, a que dei o meu modesto contributo.
Ao mesmo tempo homenagear o João, engrandecia o Lucefecit, fazendo voar e mergulhar "o Rufino", na cristalinas águas da ribeira, comentando as quatro mulheres, muito bem descritas,  pelo João.
Divagando
Poderia citar alguma figuras que vivenciaram o Alandroal, como o Barradas, o Mata Pintos, o Dr Xavier, o Zé Seabra e muitos outros, que mereciam ser recordados, mas seria extensivo  e certamente enfadonho..
Acreditem que já tenho um conto de Natal/2019, "Esmeralda, a princesa do Lameiro" pois quero dar continuidade nesta quadra, como há muito o tenho feito, no Al Tejo.
Hélder Salgado
Terena, 02-11-2019.

1 comentário:

Anónimo disse...

Gosto dos textos do Sr. Helder Salgado. São um pouco extensos mas de certa forma são agradáveis. Já agora aproveitava para lhe perguntar como está o processo da Misericordia de Terena? A obra vai mesmo avançar? Obrigada.

Maria de Jesus Seabra