quarta-feira, 6 de novembro de 2019

MEMÓRIAS CURTAS - Prof. Vitor Guita


Olha, lá vai o Gonçalo
Caminho da escola…alem…
Vamos depressa apanha-lo,
Vamos com ele também!

E se em vez de um Gonçalo imaginário, saído da pena do poeta, fôssemos ao encontro de um amigo verdadeiro, de carne e osso, companheiro desde os tempos da Primária?
Demorámo-nos largos minutos a conversar com o Joaquim Gamaliel Varela Alves (O Quim da bola). 
Estivemos a exercitar memórias.
O Quim recordou o boneco de neve construído na sala de aula, em cima da mesa do professor. Revelou-nos depois o gozo especial que experimentava em dias de chuva, só para poder vestir a gabardine que herdara de um primo seu. Surpreendeu-nos de seguida, ao confessar o apetite que sentia pelo óleo de fígado de bacalhau, tão detestado pela maior parte da rapaziada. A colher era a mesma para todos, mas cofiava-se piamente nos poderes amargo líquido. Mais à frente, falámos do livro onde aprendemos o bê-a-bá e também do nosso primeiro “tablet”, um rectângulo de ardósia emoldurado em madeira, que se apagava com um pano húmido, o punho do bibe ou com um pouco de cuspo na ponta dos dedos.
Vieram ainda à lembrança as frequentes jogatanas que fazíamos no pátio do recreio, no Rossio e nas ruas da vila, com árvores, pedras ou portões a servirem de baliza. O piso irregular puxava pela criatividade e fazia apurar a qualidade técnica dos jovens futebolistas. 
Já nessa altura, o Quim fazia toda a diferença a fintar, a chutar, a cabecear. Onde unha os olhos, punha a bola.
Momentos de escola menos agradáveis de recordar foram os relacionados com a habitual revista das segundas-feiras. Viviam-se tempos difíceis. Para muitos foram tempos de miséria. Parte da malta andava de pé descalço, mal vestida, mal alimentada, com pouco asseio. A revista era feita às mãos, ao pescoço, ás orelhas e ao cabelo, ainda assim não houvesse por ali sujidade acumulada ou parasitas escondidos.
O Quim não esquece a revolta e a humilhação que sentiu no dia em que teve que enfileirar atrás dos que eram obrigados a lavar a cabeça debaixo da torneira. Falso alarme! Tudo não passava de impingens ou de outro mal da pele. A esfrega da senhora contínua acabou por deixar uma grande mancha vermelha e o professor pediu desculpa ao Quim diante de todos.
Humilhação à parte, ambos chegámos à conclusão de que o professor Balbino foi um dos mestres mais extraordinários que tivemos. Era a maneira como ensinava, a forma como sabia entusiasmar a garotada. Era um professor e um homem muito à frente do seu tempo. Tratava-se de um ídolo para muitos de nós..
Havia um pequeno senão. O professor jogava futebol na equipa do União Sport e, domingo em que houvesse jogo no Algarve ou noutras terras distantes, era quase certo que, na manhã seguinte Manuel Balbino se deixava embalar nas asas de Morfeu. Era o Quim que habitualmente entrava de serviço e tinha de ir bater à porta do quarto que o professor alugara na Rua de Aviz.
Nessa época jogava também no União o pai do Quim. Por sinal, pai e filho receberam o mesmo nome e um enorme talento para o jogo da bola. No caso do nosso companheiro de infância, dá a sensação de que a habilidade lhe foi quase toda para os pés. Na Escola Industrial, era um desajeitado nos trabalhos oficinais, de tal modo que o pai o pôs no Externato Mestre de Avis, onde nos viemos a reencontrar.
O Quim tem presente o 1º dia de aulas no colégio. Para se integrar no novo ambiente, decidiu juntar-se a um grupo de rapaziada que tabaqueava durante o recreio. Apercebeu-se, em dado momento, de que as mãos e os cigarros dos companheiros se esconderam repentinamente atrás das costas. Olhando de soslaio, viu uma bata branca mesmo a seu lado. Era o Director do colégio, que o conduziu à secretaria, limitando-se dessa vez a brandas advertências.
Voltando ao Quim (pai), é bom dizer que o seu nome faz parte de algumas das páginas mais gloriosas da vida do clube alvinegro. Natural de Mora, foi ali que iniciou o seu percurso futebolístico. Seguiram-se o Sport Lisboa e Elvas, que subiu à primeira divisão, e o igualmente primodivisionário Vitória de Setúbal. Em Elvas, no tempo do Patalino e de outros grandes jogadores, o Quim chegou a estar á frente na lista dos melhores marcadores.
A vida de jogador não era fácil. Pagava-se pouco, quando se pagava. Da cidade do Sado, o extremo do Vitória veio para o União de Montemor. À semelhança do que aconteceu com outros atletas daquela época, foi Simão Malta que o convenceu a vir para terras do Almansor. O União tinha pouco dinheiro, mas garantia-se emprego estável (Câmara, Serviços Municipalizados, etc…)
As dificuldades experimentadas no mundo do futebol levaram o Quim a alertar o seu descendente para a dura realidade do mundo da bola. Todavia o pequeno Quim Gamaliel acompanhava as pisadas do pai e, desde muito cedo, tinha entrada livre no Estádio 1º de Maio. Aos dois ou três anos já vivia de perto a vida do balneário. O campo do União era a sua segunda casa, e sempre sonhou que um dia faria vibrar o peão e as bancadas.
Quando o pai deixou de jogar, fecharam-se algumas portas. Porém o que o Gamaliel queria era mesmo jogar e prometeu a si próprio que ainda um dia o haviam de chamar e que passaria o portão como atleta.
Dos 16 aos 17 anos fez parte da equipa de juniores e, aos 19, rumou até ao Lusitano de Évora. Campo relvado, melhores instalações e equipamentos, bolas com fartura, a possibilidade de alinhar ao lado de Mitó. Lima, Vaz, Antoninho e de outros jogadores de grande nível.Antes do Lusitano de Évora, o Quim ainda tentou a Académica de Coimbra. Foi num dia quente de Verão que se meteu na carreira da Ribatejana até Santarém, donde seguiu até à cidade do Mondego. Levava no talego uma marmita com ovos mexidos que a mãe lhe preparara. Mal chegou a Coimbra, teve de apresentar-se no estádio da Académica. Era outro mundo. O Quim nunca tinha usado trousses por baixo dos calções. Vestiu o equipamento de um dos veteranos da equipa coimbrã. Entrou finalmente em campo e jogou durante algum tempo. O massagista e outros jogadores transmitiram-lhe que a Direcção tinha apreciado a sua maneira de jogar. A adaptação foi difícil. Pouco habituado a pensões, passava horas esquecidas pelas ruas de Coimbra a fazer tempo, a ver passar os trolleys. Mal dormido, mal comido, com pouco dinheiro, decidiu pôr-se à boleia a caminho de Lisboa, donde seguiu até Almada para casa de um tio que, ainda por cima lhe deu dois tabefes pela forma como chegou e pela oportunidade que acabara de desperdiçar. Coisas mal pensadas!
Mas a grande asneira da sua vida, confidenciou-nos o Quim, foi quando, ao serviço do Lusitano teve oportunidade de defrontar o Vitória, o Desportivo da Cuf, o Barreirense. Jogou sempre bem e marcou sempre golos às equipas adversárias. Os dirigentes daqueles clubes ofereceram-lhe boas condições. Com o apoio do amigo Lenine e do José Augusto, uma eventual passagem pelo Barreirense podia ter proporcionado o salto para o Benfica.
Em Évora, a situação do clube agravara-se e o Quim saiu incompatibilizado com o Presidente da Comissão Administrativa. Acima de tudo, indignara-se com a forma como alguns dos seus colegas profissionais foram tratados. Os avisos do pai tinham toda a razão de ser. Há muitos homens bons no mundo do futebol, mas também há gente boçal, prepotente.
Pelo meio de tudo isto, meteu-se a vida militar, a passagem pelos Açores, a mobilização para Angla. Novo regresso a Montemor, desta vez para alinhar pelo União e trabalhar como bancário.
Em meados da década de 70, a agitação política e social que se vivia estendeu-se à equipa do União, com greves, plenários, ameaças da ocupação e bilheteiras e da própria sede do clube.
O Quim ainda jogou mais algumas épocas, duas no Lusitano e as restantes no União. Uma perna partida num jogo contra a União de Vila Real de Santo António parecia querer ditar o fim da carreira futebolística do craque montemorense. A lesão deixou mazelas, mas mesmo com sérias limitações, o Quim ainda voltou ás quatro linhas. Inconformado, recusou que a sua retirada dos campos de futebol fosse em cima de uma maca. O Quim quis retirar-se a fazer aquilo que mais gostava: jogar à bola. Saiu pelo seu próprio pé.
E pronto estimados leitores. São horas do apito final. Até breve.
Vitor Guita
In Montemorense Outubro 2019

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