Cancel culture or
mankind?!*
De entre os inúmeros acontecimentos que dariam motivos para fazer
uma crónica, o que não é exclusivo desta (crónica ou cronista), houve um que
chegou do fora mais longe e sobre o qual me apetece falar. Em Londres, a
propósito de uma exposição do Gauguin que está a ter um enorme êxito,
levantou-se um movimento de gente que quer censurar o artista. Está a ser o que
se chama um movimento de “cancel culture”.
Gauguin, que
viveu entre 1848 e 1903, parece ter tido uma vida pouco ou nada recomendável
nos parâmetros de comportamento que são agora os das regras da boa convivência
social. Entre relacionamentos com menores e referências aos habitantes da
Polinésia, onde viveu e que retratou, como “selvagens”, nada abona a seu favor
se quisesse nascer de novo hoje. Aconteceu a Gauguin, como a outros que
partilham o facto de já cá não estarem para responderem enquanto cidadãos, mas
de quem nos lembramos pela obra.
Este semestre
estou a celebrar os 300 anos de As Aventuras de Robinson Crusoé que Daniel
Defoe escreveu e John Lang divulgou entre jovens leitores durante quase outras
tantas centenas de anos. Como podem imaginar, reler este texto, o que faço
todas as semanas em voz alta, capítulo a capítulo, à luz dos comportamentos que
promovemos hoje é todo um exercício de contextualização e de alertas para um
outro exercício constante do que se chama pensar o progresso e evolução
civilizacional. Nada tem a ver só com Arte, tendo tudo a ver só com Arte.
Vivemos tempos em
que a busca da felicidade do indivíduo, demanda sem novidade, se reveste de um
problema de distopia. Entenda-se aqui este conceito como o vivermos num mundo
que queremos construir fora de uma realidade, criando universos que colocam em
lugares e tempos diferentes os mesmos objectos e acontecimentos destes daqui e
de agora. É sabido que com a internet, que nos mantém ligados à volta do mundo,
se criou um caldo propício a estas leituras, já que faz circular Informação
fora do contexto real e, nessa linha, possa tornar-se mesmo num apelo, ou já um
espelho, do delírio. Mas recuso-me a pôr-me do lado dos que vão pelo caminho
fácil de a diabolizar, à Internet, um produto da inteligência humana herdeiro
do fogo, da roda, da tipografia e da televisão, e que até nos ajuda a conhecer
melhor os que nela, Internet, actuam.
Nem todos podemos
mudar o Mundo, como certas personalidades que se tornam por isso figuras
públicas, artistas incluídos, contribuem para o fazer. Essas mudanças, mesmo
quando promovem coisas boas, são feitas por seres humanos que são, não apenas
“o Homem e a sua circunstância”, mas misturas de células e emoções que se
revelam diferentemente, e felizmente, consoante estejam em público ou em
privado. E é por isso que nós, os mais comuns destes mortais que compõem a
Humanidade, talvez também ganhássemos em pensar melhor o que fazemos quando
usamos espaços públicos de opinião a que cada vez mais temos acesso.
Não temos que
mudar, assim de repente, o Mundo que percebemos estar tão mal, nem tão-pouco
deixar que este nos expulse dele e nos prive de bens só pelo seu mau uso de
alguns, mesmo que sejam muitos. Não podemos mudar o Mundo assim de repente para
tão pior, que é o que parece estar a acontecer, mas podemos começar a usar as
celulazinhas cinzentas para o melhorar. E aprender é o verbo. Cancelar a
cultura é tão grave como perpetuar liminarmente a tradição. É como querer
cancelar a Humanidade. E desistir.
Até para a
semana.
*Usei “mankind”,
que é a tradução de Humanidade, não apenas à boleia do idioma do conceito de
“cancel culture”, mas também porque na azáfama das causas igualitárias a
história das palavras também apanhou por tabela. Talvez devesse haver (ou se
calhar já há) um qualquer neologismo que dessexualizasse o termo…
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