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GRÂNDOLA SAIU À RUA ANTES DE ABRIL ENTRE CENSORES E “PIDES À PAISANA”
A Grândola, editada em 1971, cantou-se então pela primeira vez, em público, ombro a ombro. Por incrível que pareça, não era uma canção conhecida, passara até quase inofensiva no reportório de Zeca Afonso, mas saiu dessa noite, cantada uma e outra vez em uníssono, escolhida para ser uma das senhas da revolução, dali a poucas semanas
A Grândola, editada em 1971, cantou-se então pela primeira vez, em público, ombro a ombro. Por incrível que pareça, não era uma canção conhecida, passara até quase inofensiva no reportório de Zeca Afonso, mas saiu dessa noite, cantada uma e outra vez em uníssono, escolhida para ser uma das senhas da revolução, dali a poucas semanas
Antes de iniciar o espetáculo daquela noite de 29 de
março de 1974, o cantor e compositor Nuno Gomes dos Santos estivera aos beijos
e abraços com antigos colegas de faculdade. Integrante da banda Intróito, Nuno
cheirara os numerosos “pides à paisana” e os censores atrelados, enviados
especiais ao I Encontro da Canção Portuguesa no Coliseu dos Recreios,
organizado pela Casa de Imprensa. As preocupações dos homens fortes do regime,
que dias antes sobrevivera a uma tentativa de golpe a partir das Caldas da Rainha,
eram bem visíveis no aparato. Mais de sete mil pessoas foram intimidadas e
vigiadas pela presença de polícia montada no exterior, munida de gás
lacrimogénio, bastões, cães esfaimados, bombas de água e de tinta azul. Até ao
tocar da sineta, ninguém deu o espetáculo por garantido. Prevenindo-se, o
regime então liderado por Marcelo Caetano autorizara uma versão higiénica do
evento, estando os seus agentes no terreno instruídos para impedir que se
cantassem letras e se dissessem poemas previamente censurados. Pela primeira
vez, Adriano Correia de Oliveira, Zeca Afonso, Manuel Freire, Fernando Tordo,
Fausto, José Jorge Letria, Carlos Paredes, Carlos Alberto Moniz, Maria do
Amparo, Rui Mingas e José Carlos Ary dos Santos, entre mutos outros,
partilhavam o palco e só essa circunstância transformara o momento numa
bomba-relógio. “Até o Patxi Andion [cantautor espanhol] esteve na assistência”,
recorda Nuno Gomes dos Santos, então também felicíssimo por rever velhos amigos
estudantes. “Até que percebi que um dos gajos com quem tinha estado aos abraços
antes do início do espetáculo, o Felipe, era um dos enviados pela ditadura para
reportar o que via e evitar que a coisa escorregasse. 'Meus senhores, estamos
cá, vamos ouvir tudo o que vocês estão a dizer e só cantam aquilo que estão
autorizados a cantar, ok?'. Fiquei pasmado e a malta ficou toda a olhar para
mim, a pensar: 'Então tu ainda há um bocadinho estavas ali aos beijos e abraços
com este gajo?!'”, recorda, com um sorriso, o músico que, após o 25 de Abril de
1974, correu Portugal de ponta a ponta a cantar a revolução. A noite - tensa, ansiosa e libertadora – foi
o que se sabe. A título excecional, e desde que limitassem a sua atuação à
vertente artística, Adriano Correia de Oliveira e Zeca Afonso, então nomes proibidos,
foram autorizados a participar. Entre as canções censuradas nessa noite estavam
Venham Mais Cinco, Cantar da Emigração, Menina dos Olhos Tristes, A Morte Saiu
à Rua, Balada do Pescador, Companheiro e Tango dos Pequenos Burgueses. A última
quadra de Dulcineia, de José Gomes Ferreira, também seria vetada, inspirando a
ironia de Manuel Freire que, a dada altura, “com ar de piada”, segundo os
relatórios da Direção Geral de Espetáculos, justificou o esquecimento de
algumas letras pelo facto de morar longe e de as ter perdido pelo caminho. Fernando Tordo e Ary dos Santos viveram minutos
delicados, vítimas circunstanciais da sua participação nos festivais da canção
“da burguesia”, como então se dizia. O poeta que viria a ser de Abril foi
vaiado, mas a sua voz rouca impôs-se com o Soneto Presente e os versos de SARL,
“a pança do patrão não lhe cabe na pele”, tendo saído quase em ombros. Tordo,
esse, nem à segunda tentativa conseguiu cantar a Tourada, “mas”, atalha Nuno
Gomes dos Santos, “se a censura não tinha conseguido entender a canção também
não podíamos esperar que a maioria dos que estavam no Coliseu entendessem”. Ali, desafiou-se tudo: o “marcelismo”, a PIDE/DGS, as
mordaças várias. A incerteza quanto à realização do espetáculo manteve-se até
ao abrir das cortinas. Caetano de Carvalho, subsecretário de Estado da
Informação e Turismo, ainda andou por ali a tentar que se cancelasse o
espetáculo, dado o elevado número de cantigas e poemas proibidos, mas houve
quem o alertasse para o barril de pólvora que enfrentaria caso isso
acontecesse. No
final, a Grândola, editada em 1971, cantou-se então pela primeira vez, em
público, ombro a ombro. Por incrível que pareça, não era uma canção conhecida,
passara até quase inofensiva no reportório de Zeca Afonso, mas saiu dessa
noite, cantada uma e outra vez em uníssono, escolhida para ser uma das senhas
da revolução, dali a poucas semanas. O espetáculo – cuja documentação está hoje
à distância de um clique no site da Torre
do Tombo deu 123 contos de lucro, pouco mais de 600 euros
hoje. Mas a lotaria, na verdade, saiu-nos a todos.
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