quinta-feira, 10 de outubro de 2019

MAIS UM “APONTAMENTO” DE MIGUEL CARVALHO PUBLICADO NA VISÃO

Com o nome de “ARQUIVO MORTO” e publicado na Revista Visão, Miguel Carvalho. brinda-nos  COM MAIS UMA EXCELENTE CRONICA. - NÃO DEIXE DE LER!
A PIDE, A MULHER TRAÍDA E A AMANTE FRANCESA

Sobre o que esse “vendaval de alegria” e “desordem perfumada” de apelido Garnier fez à vida do ditador, muito terá ficado por contar. Nada, porém, que preocupasse o professor de Santa Comba. Como se sabe, morreria celibatário e sem protagonizar, pelo menos oficialmente, qualquer incidente a que PIDE pudesse chamar “desarmonia do lar”
O ano é 1961. Estamos no Portugal de Oliveira Salazar.
As mulheres portuguesas obedecem, por lei, aos maridos.
Para elas, o lar. Para eles, o mundo.
Sem direito a voto, impedidas de viajar sozinhas ou de aceder a diversas carreiras profissionais (polícia, militar, juíza ou diplomata), as mulheres do tempo da ditadura estão, na prática, destinadas à reclusão matrimonial, à vocação maternal e instruídas na obediência cega ao marido.
Desconfortável com uma informação proveniente de Lisboa, o Ministério dos Negócios Estrangeiros francês contactara a embaixada portuguesa em Paris para saber as misteriosas razões que haviam motivado a interdição de entrada nosso País da cidadã de nacionalidade gaulesa Gisele Suzanne Calve, de 32 anos. Empregada de escritório, ela embarcara no avião da Air France, de dia 2 de setembro daquele ano, rumo a Portugal. À chegada, porém, fora impedida de entrar em território nacional pela PIDE.
Quando o facto sobressaltou o governo francês, este exigiu explicações, além de reclamar a instauração de um rigoroso inquérito ao sucedido. Sem disfarçar a atrapalhação, os serviços do Estado português tentam indagar as motivações da ocorrência no aeroporto de Lisboa e apressar uma resposta que evite um incidente diplomático desnecessário.
A Direção-Geral dos Negócios Políticos e da Administração Interna no âmbito do Ministério dos Negócios Estrangeiros intervém, enviando um ofício à polícia política a solicitar informações sobre o caso.
A resposta foi comunicada a 27 de setembro de 1961 pela própria PIDE: a cidadã francesa Gisele Calve não era politicamente inconveniente, nem uma perigosa revolucionária ou ativista militante contra o Estado Novo. Pelo menos que se soubesse, bem entendido. Na verdade, fora apenas proibida de entrar no País porque “uma senhora portuguesa” se queixara à polícia política da madame que, afinal, seria a suposta amante francesa do marido, acusando-a, por isso, de “desarmonia do lar”.
Zeladora da ordem, protetora dos bons costumes, a PIDE decidiu encerrar o caso e recambiar a triste e desamparada Gisele à proveniência, mantendo intacta a fachada do abençoado casamento católico, feliz e para a vida, sem que tenham sobrevivido relatos de outras diligências.
Dez anos antes, no verão de 1951, uma outra francesa, conotada com os apaniguados do regime de Vichy, aterrara sem problemas em Portugal.
Christine Garnier era jornalista e romancista. Viajara até Lisboa para entrevistar e retratar o Presidente do Conselho em livro. Chamou-lhe Férias com Salazar, mas o conteúdo alcançaria, na modorra nacional de então, estatuto de algum atrevimento.
Sobre o que esse “vendaval de alegria” e “desordem perfumada” de apelido Garnier fez à vida do ditador, muito terá ficado por contar. Nada, porém, que preocupasse o professor de Santa Comba. Como se sabe, morreria celibatário e sem protagonizar, pelo menos oficialmente, qualquer incidente a que PIDE pudesse chamar “desarmonia do lar”.



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