A
vaquinha foi tema de café, polémica de jornal e pretexto para agitar ainda mais
o acalorado debate político, não refeito das fogueiras do PREC, muitas delas
ainda acesas - Foi
sucesso idêntico ao da Gabriela, primeira telenovela brasileira exibida em
Portugal pela RTP. Mas se a prestação da atriz Sónia Braga chegou a interromper
os trabalhos na Assembleia da República, A Visita da Cornélia, a vaca mais famosa do
pós-revolução gerou tensões políticas inflamadas, típicas do radicalismo dos
primeiros anos de democracia. - Concurso
televisivo idealizado por Raul Solnado e Fialho Gouveia em 1977, gravado no
Teatro Villaret, a vaca Cornélia - “simpática e divertida” segundo os criadores
– tinha de ser mugida em palco pelos concorrentes, sujeitos a diversas provas
de habilidade (entre as quais se incluíam cantar, dançar ou acender 25 velas em
90 segundos) e conhecimentos (que iam da Literatura ao Código da Estrada,
passando pelos artigos da Constituição da República e noções de Primeiros Socorros).
Embora o animal não desse leite nem mama, mexia, e de que maneira, com o País,
além de garantir chorudos prémios aos três primeiros candidatos à vitória
final: um apartamento, um automóvel “e uma casa pré-fabricada”. - A
estreia do programa, a 30 de maio de 1977, ficou assinalada por momentos
inesquecíveis protagonizados pelo jornalista e escritor Fernando Assis Pacheco,
então chefe de redação do Diário
de Lisboa, guindado a vedeta nacional nos meses seguintes pela
inteligência do seu humor e talento. Segundo ele, o concurso trazia à realidade
portuguesa da época, além de outras qualidades, “descompressão política”. Mas
esse não seria propriamente o resultado alcançado, tendo o próprio Assis
Pacheco abandonado o programa, em julho, depois de algumas das suas opiniões
gerarem controvérsia. “As pessoas estão muito sensíveis às coisas políticas”,
justificava Raul Solnado, em defesa do jornalista. “Acho que fez muito bem,
estavam a acusá-lo de tanta coisa…” - As
decisões, comentários e achegas dos elementos do júri do concurso, constituído
por Maria João Seixas, Luís Sttau Monteiro, Paulo Renato, Maria Leonor e Raul
Calado, tomaram conta do quotidiano nacional, sendo escrutinadas e debatidas ao
pormenor. A vaquinha foi tema de café, polémica de jornal e pretexto para
agitar ainda mais o acalorado debate político, não refeito das fogueiras do
PREC, muitas delas ainda acesas. “Senhor deputado, nós não estamos na
Cornélia”, chegou a escutar-se, em pleno Parlamento. De acordo com relatos do
vespertino A Capital, a RTP tornou-se então, a pretexto do concurso, alvo
predileto de “grupos de pressão, setores esquecidos, entidades não consultadas,
gente que se julga sem voz, sindicatos, partidos políticos despeitados”, sem
esquecer o próprio Presidente da República, Ramalho Eanes. “Está tudo contra a
RTP…menos o público”, acrescentava o jornal. - Acusados
de afinidades políticas à esquerda, os membros do júri tiveram de vir a
terreiro, diversas vezes, defender os seus argumentos e a sua independência.
Mas Maria João Seixas, então marcada pela ligação a alguns artífices da
Revolução e ex-integrante dos corpos diretivos da Associação de Amizade
Portugal-URSS não se livrou de um susto maior. - Jantava
ela tranquilamente no Porto, no famoso restaurante Bule, da Foz, em setembro de
1977, quando, segundo o Expresso,
foi ameaçada e insultada por várias personalidades da cidade, então conotadas
com os setores radicais de direita. “Comunista” “Gaga gonçalvista”, “não te
queremos cá”, “Vai para a Cornélia”, foram alguns dos “mimos” a ela dirigidos
por um grupo de 15 figuras onde se destacavam Rui Moreira (antigo empresário da
Molaflex e pai do atual presidente da Câmara Municipal do Porto), Fernando Guedes
(histórico líder da Sogrape), J. Marques (industrial têxtil) e Cristiano Van
Zeller (empresário ligado ao setor vinícola). A jurada do concurso foi barrada,
à saída: “Com que então os comunas já vêm aos nossos restaurantes?”, desafiou
um dos elementos, impedindo a sua passagem. - Entre
os convivas da jurada do concurso estava, de acordo com os jornais, Manuel
Avides Moreira que, apesar das distâncias ideológicas em relação à jurada do
concurso, ficou incomodado com a atitude daquelas figuras da sociedade portuense
suas conhecidas, “verberando a deselegância e até o caráter ofensivo do
comportamento do grupo”. O Jornal também
não deixou de assinalar a atitude da “versão portuga dos coronéis” brasileiros,
mas Maria João Seixas, essa, desvalorizou: “Tenho do Porto e da gente da Foz a
melhor impressão. Nas ruas do Porto, nos mercados, as pessoas que me
reconheceram foram sempre extraordinárias”, referiu, concluindo: “Não confundo
aquele grupo com a população da cidade”. - A
vaca, essa, ficou na memória de gerações. Os “coronéis” nem tanto.
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