Neste mês de Julho de caras tão diferentes, ora quente e
radioso, ora frio e enevoado, a fazer lembrar a comédia e a tragédia, elegemos
para assunto destas nossas Memórias algumas das inesquecíveis experiências
teatrais que vivemos na Sociedade Antiga Filarmónica Montemorense (Carlista).
Vamos ter que recuar meio século.
É verdade. Vai fazer em breve cinquenta anos que tivemos a
nossa primeira prova de fogo a nível teatral. Em Agosto de 1969, o Grupo Cénico
da Colectividade levou à cena a peça Deus
lhe Pague do dramaturgo brasileiro Joracy Camargo, peça com que os amadores
montemorenses prestaram provas de selecção perante um júri do S.N.I.
(Secretariado Nacional de Informação). O ensaiador e nosso amigo Domingos dos
Santos confiou-nos um papel de enormíssima exigência, numa das peças que é
seguramente uma das mais prestigiadas do reportório mundial.
O enredo gira em torno de dois mendigos, um dos quais,
revoltado com a sociedade, decide vingar-se e tornar-se rico, pedindo esmola à
porta das igrejas. A peça faz uma duríssima crítica social.
Como e estimado leitor poderá imaginar, não foi pêra doce
para um jovem amador de vinte anos meter-se, durante cerca de hora e meia, na
pele de um pedinte conhecedor da vida, expressando uma filosofia amarga e ao
mesmo tempo cheia de ironia. Para dificultar a tarefa, tínhamos, em
determinados momentos da representação, de simular os estados de espirito e as
atitudes de um proletário vinte cinco anos mais novo.
Durante a maior parte do tempo, contracenava connosco o
amigo Jacinto Jesus Teles, um dos grandes amadores que pisou o palco da
Carlista: Com o salão à cunha e um calor insuportável, ali estivemos os dois
pedinchando e dialogando, sentados num portal da igreja enfiados em casacões
meio esfarrapados e de chapéu na mão. As grisalhas cabeleiras, as barbas e os
bigodes postiços trouxeram-nos de Lisboa os estafetas de serviço (o Artur ou o
Vences). As barbas e os bigodes eram colados com verniz ou tinham uma armação
metálica que nos massacrava impiedosamente a face.
De destacar o trabalho do Alberto Ceroula, que, com os
escassos meios técnicos que tinha à sua disposição, fez milagres a nível de luz
e do som, e também o magnifico cenário pintado pelo talentoso Orlando Baptista
(filho). Serviram de ponto e contra-regra o Joaquim J. Marques Rito e Ezequiel
Joaquim Amador. Além dos nomes já referidos, a peça foi interpretada por José
Manuel Estróia, Teodolinda Brotas, Maria Manuela Lima, José J. Rubira Ferreira
e Clara Henriqueta I. Ovelha.
O Grupo da Carlista esteve em muito bom nível, tendo os
amadores Jacinto Jesus Teles e Clara Henriques Inverno Ovelha sido distinguidos
com menções honrosas.
Deixe-nos acrescentar, amigo leitor, que a peça Deus lhe Pague começou por ser
representada nos anos 30, pela companhia de Precópio Ferreira, um dos mais
geniais homens do teatro do Brasil. A primeira representação aconteceu na
cidade de S. Paulo, tendo recebido um prémio da Academia Brasileira de Letras.
O sucesso foi tal, que todas as companhias brasileiras passaram a integrar a
peça no seu repertório, o que originou muitas centenas ou mesmo milhares de
representações.
Aquele que foi considerado um dos maires sucessos da
dramatologia brasileira começou entretanto a fazer parte do reportório da maior
parte de todas as companhias dos países latino-americanos e chegou mesmo a
universidades dos Estados Unidos onde o texto foi adoptado como livro auxiliar
para os estudantes da língua portuguesa.
A peça foi mais tarde traduzida em diversos idiomas e passou
a constituir um dos maiores sucessos de literatura teatral.
O texti de Joracy Camargo foi representado com grande êxito
na Argentina, onde foi adaptado para cinema, mas também em Madrid e Lisboa. O
publico português, segundo consta aplaudiu com entusiasmo a conhecida peça, que
não se limitava a divertir, mas a por as pessoas a pensar, levando-as a
questionar a realidade carioca e não só. Para muitos a peça inaugurou o teatro
social no Brasil.
Sem pretendermos ser exaustivos, não queríamos deixar de
dizer duas palavras acerca do genial autor do Deus lhe pague.
Joracy Camargo nasceu no Rio de Janeiro e morreu em 1973,
com a idade de 75 anos. Foi dramaturgo, teatrólogo, jornalista, professor e
membro da Academia Brasileira de Letras. O seu teatro revela profundas
preocupações sociais, tais como o desemprego, a miséria, a posse da propriedade, mas também com o egoísmo e a
hipocrisia dos homens. Sente-se em muita da sua escrita teatral, um misto de
humor e de espirito revolucionário.
Em 1969, na Sociedade Carlista, foi possível representar Deus lhe Pague, apesar dos cortes da
censura. Tal facto diz bem da abertura que o regime daquela época ia
manifestando.
Queremos partilhar consigo, leitor amigo, algumas das falas
da peça que ainda hoje permacem bem vivas na nossa memória:
Outro
Mas o senhor é rico
mesmo?
Mendigo
Sou, mas não tenho
culpa nenhuma disso
Outro
E pretende continuar
esmolando?
Mendigo
Até ao fim da vida.
Não me dá trabalho nenhum…não pago impostos…não estou sujeito a incêndio ou a
falência…(…)
Outro
O senhor tem
secretária
Mendigo
Contratei um rapaz
esperto, que percorre a cidade, lê jornais e lembra-me as datas. Às vezes estou
tranquilamente em casa, na minha biblioteca, metido num dos mais lindos
robes-cor-de-chambre, lendo Upton Sinclair, Karl Marx…quando recebo um
telefonema urgente. É o meu secretário avisando sobre uma boa missa, um
excelente casamento, uma festa popular, onde há maior número de generosos,
segundo a sua psicologia.
Outro
O senhor nasceu
mendigo?
Mendigo
Não. Nasci
trabalhador! Lutei muito pela vida! Luta desigual! Eu era um pobre operário,
com a cabeça cheia de sonhos e os braços em constante movimento. Cheguei às
portas da fortuna e não pude entrar, porque me barraram com a porta na cara!
Já quase no fim de alinhavarmos estas Memórias, um velho
prospecto alertou-nos para o facto de, em Agosto de 1969, o Grupo Cénico da
Carlista, com o patrocínio da Câmara Municipal, ter representado Deus lhe Pague no palco do Cine Teatro
Curvo Semedo. Tratou-se de uma homenagem à Associação dos Bombeiros Voluntários
de Montemor-o-Novo, tendo a receita do espectáculo revertido a seu favor.
E pronto estimado leitor. É com esta mensagem de
solidariedade que nos despedimos até uma próxima oportunidade. Vamos tirar uns
dias de férias.
Até Setembro
Vitor Guita
Transcrito com autorização
do Autor do “Montemorense”- Julho 2019
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