segunda-feira, 5 de agosto de 2019

MEMÓRIAS CURTAS - Prof Vitor Guita

O Verão costuma trazer lufadas de recordações. São lembranças das festas e das feiras, do modo como costumávamos ocupar, criativamente, os dias de férias, sem esquecer as árduas tarefas daqueles que tinham que labutar na vila e no campo.
Neste mês de Julho de caras tão diferentes, ora quente e radioso, ora frio e enevoado, a fazer lembrar a comédia e a tragédia, elegemos para assunto destas nossas Memórias algumas das inesquecíveis experiências teatrais que vivemos na Sociedade Antiga Filarmónica Montemorense (Carlista). Vamos ter que recuar meio século.
É verdade. Vai fazer em breve cinquenta anos que tivemos a nossa primeira prova de fogo a nível teatral. Em Agosto de 1969, o Grupo Cénico da Colectividade levou à cena a peça Deus lhe Pague do dramaturgo brasileiro Joracy Camargo, peça com que os amadores montemorenses prestaram provas de selecção perante um júri do S.N.I. (Secretariado Nacional de Informação). O ensaiador e nosso amigo Domingos dos Santos confiou-nos um papel de enormíssima exigência, numa das peças que é seguramente uma das mais prestigiadas do reportório mundial.
O enredo gira em torno de dois mendigos, um dos quais, revoltado com a sociedade, decide vingar-se e tornar-se rico, pedindo esmola à porta das igrejas. A peça faz uma duríssima crítica social.
Como e estimado leitor poderá imaginar, não foi pêra doce para um jovem amador de vinte anos meter-se, durante cerca de hora e meia, na pele de um pedinte conhecedor da vida, expressando uma filosofia amarga e ao mesmo tempo cheia de ironia. Para dificultar a tarefa, tínhamos, em determinados momentos da representação, de simular os estados de espirito e as atitudes de um proletário vinte cinco anos mais novo.
Durante a maior parte do tempo, contracenava connosco o amigo Jacinto Jesus Teles, um dos grandes amadores que pisou o palco da Carlista: Com o salão à cunha e um calor insuportável, ali estivemos os dois pedinchando e dialogando, sentados num portal da igreja enfiados em casacões meio esfarrapados e de chapéu na mão. As grisalhas cabeleiras, as barbas e os bigodes postiços trouxeram-nos de Lisboa os estafetas de serviço (o Artur ou o Vences). As barbas e os bigodes eram colados com verniz ou tinham uma armação metálica que nos massacrava impiedosamente a face.
De destacar o trabalho do Alberto Ceroula, que, com os escassos meios técnicos que tinha à sua disposição, fez milagres a nível de luz e do som, e também o magnifico cenário pintado pelo talentoso Orlando Baptista (filho). Serviram de ponto e contra-regra o Joaquim J. Marques Rito e Ezequiel Joaquim Amador. Além dos nomes já referidos, a peça foi interpretada por José Manuel Estróia, Teodolinda Brotas, Maria Manuela Lima, José J. Rubira Ferreira e Clara Henriqueta I. Ovelha.
O Grupo da Carlista esteve em muito bom nível, tendo os amadores Jacinto Jesus Teles e Clara Henriques Inverno Ovelha sido distinguidos com menções honrosas.
Deixe-nos acrescentar, amigo leitor, que a peça Deus lhe Pague começou por ser representada nos anos 30, pela companhia de Precópio Ferreira, um dos mais geniais homens do teatro do Brasil. A primeira representação aconteceu na cidade de S. Paulo, tendo recebido um prémio da Academia Brasileira de Letras. O sucesso foi tal, que todas as companhias brasileiras passaram a integrar a peça no seu repertório, o que originou muitas centenas ou mesmo milhares de representações.
Aquele que foi considerado um dos maires sucessos da dramatologia brasileira começou entretanto a fazer parte do reportório da maior parte de todas as companhias dos países latino-americanos e chegou mesmo a universidades dos Estados Unidos onde o texto foi adoptado como livro auxiliar para os estudantes da língua portuguesa.
A peça foi mais tarde traduzida em diversos idiomas e passou a constituir um dos maiores sucessos de literatura teatral.
O texti de Joracy Camargo foi representado com grande êxito na Argentina, onde foi adaptado para cinema, mas também em Madrid e Lisboa. O publico português, segundo consta aplaudiu com entusiasmo a conhecida peça, que não se limitava a divertir, mas a por as pessoas a pensar, levando-as a questionar a realidade carioca e não só. Para muitos a peça inaugurou o teatro social no Brasil.
Sem pretendermos ser exaustivos, não queríamos deixar de dizer duas palavras acerca do genial autor do Deus lhe pague.
Joracy Camargo nasceu no Rio de Janeiro e morreu em 1973, com a idade de 75 anos. Foi dramaturgo, teatrólogo, jornalista, professor e membro da Academia Brasileira de Letras. O seu teatro revela profundas preocupações sociais, tais como o desemprego, a miséria, a posse  da propriedade, mas também com o egoísmo e a hipocrisia dos homens. Sente-se em muita da sua escrita teatral, um misto de humor e de espirito revolucionário.
Em 1969, na Sociedade Carlista, foi possível representar Deus lhe Pague, apesar dos cortes da censura. Tal facto diz bem da abertura que o regime daquela época ia manifestando.
Queremos partilhar consigo, leitor amigo, algumas das falas da peça que ainda hoje permacem bem vivas na nossa memória:
Outro
Mas o senhor é rico mesmo?
Mendigo
Sou, mas não tenho culpa nenhuma disso
Outro
E pretende continuar esmolando?
Mendigo
Até ao fim da vida. Não me dá trabalho nenhum…não pago impostos…não estou sujeito a incêndio ou a falência…(…)
Outro
O senhor tem secretária
Mendigo
Contratei um rapaz esperto, que percorre a cidade, lê jornais e lembra-me as datas. Às vezes estou tranquilamente em casa, na minha biblioteca, metido num dos mais lindos robes-cor-de-chambre, lendo Upton Sinclair, Karl Marx…quando recebo um telefonema urgente. É o meu secretário avisando sobre uma boa missa, um excelente casamento, uma festa popular, onde há maior número de generosos, segundo a sua psicologia.
Outro
O senhor nasceu mendigo?
Mendigo
Não. Nasci trabalhador! Lutei muito pela vida! Luta desigual! Eu era um pobre operário, com a cabeça cheia de sonhos e os braços em constante movimento. Cheguei às portas da fortuna e não pude entrar, porque me barraram com a porta na cara!
Já quase no fim de alinhavarmos estas Memórias, um velho prospecto alertou-nos para o facto de, em Agosto de 1969, o Grupo Cénico da Carlista, com o patrocínio da Câmara Municipal, ter representado Deus lhe Pague no palco do Cine Teatro Curvo Semedo. Tratou-se de uma homenagem à Associação dos Bombeiros Voluntários de Montemor-o-Novo, tendo a receita do espectáculo revertido a seu favor.
E pronto estimado leitor. É com esta mensagem de solidariedade que nos despedimos até uma próxima oportunidade. Vamos tirar uns dias de férias.
Até Setembro
Vitor Guita
Transcrito com autorização do Autor do “Montemorense”- Julho 2019


Sem comentários: