quarta-feira, 28 de agosto de 2019

MALEFÍCIOS DA CENSURA - APONTAMENTOS DA VIDA DE JORGE AMADO

A obra que se segue retrata uma pesquisa biográfica levada a cabo por Joselia Aguiar, sobre o grande escritor Jorge Amado, e publicada no Jornal o Publico, pela pena de João Céu e Silva.
Porque se trata de um trabalho fascinante, mas longo, optamos por deixar ao critério dos nossos visitantes a leitura do mesmo, bastando para tal clicar onde diz: Ler mais
A vez em que Saramago não cumprimentou Jorge Amado
A brasileira Joselia Aguiar ocupou sete anos da sua vida a investigar um dos escritores brasileiros mais lidos em todo o mundo. Jorge Amado - Uma Biografia é o resultado dessa missão, revelando o autor por completo. Leia a pré-publicação.

João Céu e Silva
27 Agosto 2019 — 00:01
José Saramago, José Cardoso Pires e Jorge Amado em Lisboa.
A fotografia da capa da mais recente biografia sobre Jorge Amado (1912-2001) mostra o escritor como os leitores bem conhecem, mas Jorge Amado - Uma Biografia é muito mais do que esta imagem de um homem numa praia da Bahia. É que Joselia Aguiar mergulhou durante sete anos nesta investigação sobre o escritor, teve acesso exclusivo a manuscritos inéditos, bem como a documentos de família e cartas de amigos e de outros escritores, além de realizar uma série de entrevistas para compor o retrato final.

É o caso de quando o autor quer deixar o Rio de Janeiro e Joselia Aguiar descreve as peripécias da mudança: "O velho sonho de Jorge Amado de ter uma casa na Bahia - para se mudar definitivamente - começou a ser realizado." E acompanha esta viagem biográfica sempre recheada de pormenores, neste caso a dificuldade em comprar uma casa sem que o proprietário duplique o preço. Há outras questões mais importantes, já que não faltam episódios críticos na sua vida, como o de quando é exilado ou decide viver apenas da literatura.
Segundo a autora, esta biografia tem um pouco mais de seiscentas páginas mas poderia ter o dobro "e ainda assim ficaria coisa de fora". A razão desta dimensão está no facto de Jorge Amado ter sido um dos escritores mais populares do Brasil - só foi suplantado por Paulo Coelho - e traduzido em meia centena de países, sendo que muitos dos seus romances tornaram-se sucessos ainda maiores após a adaptação a televisão e ao cinema.
Numa entrevista, Joselia Aguiar considerou que a trajetória política de Jorge Amado é paralela a vários momentos da história do Brasil: "Na obra de memórias Navegação de Cabotagem, ele refere-se aos livros de seu período mais comunista como 'tarefas partidárias'." Tanto assim que após esses "cadernos de aprendiz" escritos na juventude, Joselia Aguiar explica que o grande salto enquanto autor conhecido fora do seu país dá-se quando Jorge Amado decide escrever uma biografia de Luís Carlos Prestes, o dirigente comunista brasileiro, em 1942. É esse livro, O Cavaleiro da Esperança, que "lhe abre portas e dá um determinado prestígio. Mas a obra de Amado já circulava em França e nos Estados Unidos e era publicada por boas editoras. Depois de ser impedido de continuar como deputado, em 1948, Amado vai para o exílio e conhece os países do Leste, onde é muito lido".
A Gabriela Sónia Braga com o escritor Jorge Amado.
Após emancipar-se da doutrina ideológica nos romances, a carreira de Jorge Amado tem um novo impulsodesignadamente a partir do momento em que publica Gabriela, Cravo e Canela. A presença de uma Bahia sensual misturada com os conflitos entre trabalhadores e os donos das terras do nordeste não deixará de estar presente em dois novos sucessos, Dona Flor e Seus Dois Maridos e Tereza Batista Cansada de Guerra.
Para Joselia Aguiar, a biografia que escreveu tem muito de inédito e fixa a cronologia de acontecimentos na vida de Jorge Amado, mas não deixa de referir que "Jorge Amado é uma área de investigação interminável, que ainda deve ser explorada em muitos campos".
A biografia tem múltiplas referências a Portugal, como é o caso do capítulo 33 que o DN pré-publica na semana em que a investigação de Joselia Aguiar chega às nossas livrarias. Onde se recorda o episódio em que José Saramago queria conhecer o brasileiro Jorge Amado mas teve vergonha de se intrometer.
Lisboa (capítulo 33)

"O jantar surpresa no aeroporto não era a única lembrança que Jorge guardava de uma Lisboa que lhe era proibida. Houve um encontro inesperado com a cidade, sem repercussão, tendo como única testemunha um incansável policial que permaneceu todo o tempo em seu encalço. Retornava de uma das viagens à Europa quando a companhia aérea escandinava SAS anunciou uma greve no meio da jornada. O avião deixou os passageiros na capital portuguesa, onde poderiam encontrar outros voos. Jorge descobriu que só conseguiria passagem para o dia seguinte, pela manhã. Levados para a imigração, os passageiros receberam visto para 24 horas.
"Um ônibus os levara para um hotel do centro. Foram convidados pela SAS para um jantar numa casa de fados. Pensou em telefonar para Álvaro Lins, agora embaixador do Brasil. Podia ter ido a uma revista com Beatriz Costa, sua amiga. Diante da cidade interditada e desejada, entretanto, decidiu 'andar pelas ruas'. Na portaria trocou dinheiro, perguntou como ir até o Rossio, num caminho em que se sentia 'comovido com as cores, os cheiros e ruídos', prestou atenção em vitrines e tabuletas. Na livraria, viu um exemplar de Degelo. Tinha entregado a edição brasileira ao amigo russo. Encontrou também um livro de Cesário Verde, seu poeta português preferido. Saiu para a praça do Comércio e notou o sujeito de chapéu e gabardine em seu encalço - já avistara o tipo no saguão do hotel. De volta ao Rossio, tomou café, se informou sobre Mouraria e Alfama. Por acaso, avistou os companheiros de avião saltarem do ônibus em direção à casa de fados. Voltou altas horas para o hotel. 'Nas ruas calmas e quase desertas de inverno', entendeu que tinha sido 'um encontro de amor', 'com a mesma infinita emoção com que se toca pela primeira vez o corpo de mulher desejada e proibida'. Pegou a chave, dirigiu-se ao elevador e notou o sujeito de gabardine na porta. Teve ímpetos de lhe acenar para se despedir. De manhã, quando se dirigiu ao ônibus que os levaria até o aeroporto, estava lá de novo, na calçada. Sentou-se num lugar dos fundos do veículo e acompanhou Jorge até a sala de trânsito do aeroporto.
"Em Lisboa, logo deixaria de ser contrabando literário. Para circular livremente,Gabrielafora seu salvo-conduto. Francisco Lyon de Castro era o editor disposto a enfrentar as autoridades portuguesas do salazarismo. De tão empenhado, recebeu primeiro ameaça de fechamento de sua casa editorial. Um exemplar acabou ficando com os homens do regime, e, quando menos esperavam, o livro foi liberado, contanto que fossem trocadas certas palavras. Consultado, o autor aceitou substituí-las por mais comportadas. Quem assinou o prefácio não foi outro senão Ferreira de Castro. A primeira edição, de março de 1960, vendeu 10 mil exemplares. Em três anos, seriam 17 mil. Com a aceitação do autor outrora proibido, outros livros acabaram autorizados. Até 1982, seriam quinze edições de Gabriela, 110 mil exemplares vendidos. A mudança do conceito sobre o autor pode ser comprovada nos pareceres da censura, os de antes e os de depois da liberação. A história de sua proibição era longa. Antes, em 1951, Terras do sem-fim não fora aprovado pelo major português David dos Santos, funcionário da censura: 'A própria dedicatória do livro vale por todos os escritos e relatórios. A comunista oferta e homenagens comunistas. Não se deve permitir a circulação deste livro.' Na mesma data, sobre São Jorge dos Ilhéus, quem fez o relatório de censura era o mesmo major: 'Este livro é dum categorizado comunista brasileiro. O tema é - como se segue - explorar as desigualdades sociais, com vista aos triunfos dos comunistas. Por esta razão julgo de proibir.' No ano seguinte, em fevereiro, um novo leitor-censor, o tenente Antonio Afonso Raposo, não era tão taxativo sobre Mar Morto: 'Romance que decorre entre marítimos e rameiras, tem passagens condenáveis mas talvez não seja o suficiente para ser proibido.' No entanto a anotação e o carimbo de autoridade superior não o liberaram. O parecer referente a Capitães da Areia, datado do mesmo mês e ano, assinado de novo por Raposo, continua a recusá-lo: 'Os capitães da areia são rapazes abandonados em número superior a cem que vivem do roubo, do assalto e de todas as formas condenadas. Admiradores do bandido Lampião. Nele existem todos os vícios postos a claro. No final do livro já alguns são apresentados como agitadores e propagandistas perseguidos. Entendo que deve ser proibido.' O carimbo referenda, com anotações: 'imoralidades e misérias sociais.'
"Uma obra como Os Subterrâneos da Liberdade não receberia e avaliação diferente. De abril de 1956, o parecer sobre o livro tem como autor o chefe da censura, J. B. Pereira de Mello: 'É uma obra inteiramente de propaganda comunista, de exaltação do comunismo brasileiro e do seu chefe Luís Carlos Prestes. Parece-me, pois, de proibir sem hesitação.' Em fevereiro de 1957, o ABC de Castro Alves não encontraria outra sorte; o texto do leitor Antonio Borges Ferreira é mais longo: 'Jorge Amado é já conhecido como comunista ou comunisante; portanto, apresentando este livro sobre Castro Alves - o cantor dos escravos - torna-se apologista da obra do poeta, tendo em vista a grande afinidade existente entre os dois - Jorge Amado e Castro Alves. Lendo vários episódios deste livro, observa-se um realismo extraordinário, que roça, por vezes, pela imoralidade. A cada passo se topa com sinais de revolta, muito e muito do agrado do autor; pois se os temperamentos são semelhantes não é de estranhar o amor manifestado pela vida e obra de Castro Alves. Em qualquer altura que se abra este livro, vê-se logo a índole do autor. Por todas estas razões, sou de parecer que o livro deve ser proibido de circular em Portugal.' Gabriela, Cravo e Canela de início teria o mesmo destino. Assinado pelo leitor Fernando Carvalho Tártaro, cuja patente não está identificada, o parecer diz, em outubro de 1958: 'É um romance popular, passado nos princípios do século XX, de sabor nativo, bastante imoral e algumas vezes obsceno, em que foca o panorama excepcionalmente vivo dos Ilhéus e zonas adjacentes, na Baía [sic], na sua fase de transição, baseadas em novas ideias orientadas pelo progresso. Quadro de paixões políticas e lutas pelo poder entre 'coronéis' fazendeiros de cacau, nativos e 'jagunços' (assassinos profissionais), cenas de adultério, morte dos amantes pelo marido ultrajado, seus comentários; mas sendo talvez o principal personagem Gabriela, a mestiça e os seus amores. Julgo não ser de autorizar a sua venda.' O carimbo de autorização é de janeiro de 1960, desde que sejam 'suprimidas expressões'.
Jorge Amado e Zélia Gattai no Porto em 2001.- © Fernando Timóteo/Global Imagens
"A disposição passou a ser outra depois que o autor foi liberado. 'Romance cem por cento brasileiro de índole muito maliciosa em que são descritas algumas cenas pouco edificantes, senão imorais', disse o leitor-censor Estevão Martins sobre Dona Flor, em 1966. 'Porém a beleza da prosa e a delicadeza com que são apresentadas as brejeirices forçam-nos a uma certa condescendência favorável na nossa apreciação', aquiescia. 'Uma vez ou outra aparece uma palavra obscena, o que aliás está muito em voga nos escritores da atualidade. Atendendo à categoria literária do autor e ao fato de o livro ser volumoso e caro, o que de certo modo só o torna acessível a adultos, e não a todos, proponho que este livro seja autorizado.' Liberariam, em 1971, até mesmo o militante Seara Vermelha, no relatório mais longo, com duas páginas, que se refere a 'tendências nitidamente esquerdistas'. 'As suas obras procuram focar temas sociais do Brasil com um realismo (ou neorrealismo) talvez exagerado, o que o leva a encará-las mais como obras de ficção do que como um retrato da vida real.' Segue-se longa descrição do enredo. 'O gênio do escritor teceu esse romance que, apesar de tudo e das denúncias de uma sociedade fortemente capitalista no seu pior sentido, não deixa de ser encarado como romance, tanto mais que as condições em Portugal, por piores que sejam, nem de longe se podem comparar com as descritas pelo autor, no Brasil, daí que, em conclusão e em minha opinião, não haverá grave inconveniente em que o livro em causa seja autorizado a circular.' O leitor era o tenente-coronel Paranhos Teixeira.
"A ditadura portuguesa não controlava apenas a obra de Jorge. Seus menores passos no país eram descritos em relatórios de arapongas, recortes de jornais e revistas que engordavam a pasta com seu nome na PIDE. Quando houve o Colóquio Luso-Brasileiro, na Bahia, em setembro de 1959 - o mesmo evento em que Jorge pilheriou sobre os negócios de Odorico Tavares no meretrício -, chamou a atenção do regime seu discurso, que, como anotaram os espiões, fazia apologia do mundo afro-brasileiro e funcionava como libelo contra o Portugal oficialista, cuja delegação era chefiada pelo ministro Marcelo Caetano. A PIDE via o escritor como um dos mais importantes agentes de ligação entre os partidos da América Latina e Moscou. Até à década de 1950, os agentes de Salazar acreditavam que, mesmo nunca tendo ocupado cargo dentro do PCB, Jorge atuava como conselheiro do secretário-geral do partido e portador de instruções de Moscou para o Brasil nas suas frequentes viagens pelos países da Cortina de Ferro, sobretudo como membro diretivo do Conselho Mundial da Paz.
"O distanciamento do partido não diminuiu a espionagem. Nos registros da década de 1960, consta a criação do Movimento Afro-Brasileiro Pró-Libertação de Angola - então colônia portuguesa -, no qual Jorge se destacava como um dos integrantes. Os encontros que ele e Eduardo Portella tinham no Rio com intelectuais e ativistas de Angola eram acompanhados de perto, com fotos. A polícia política portuguesa recebia do Brasil cópias de artigos e discursos, como os que Jorge escreveu na revista Tempo Brasileiro, fundada por Portella, contra a política ultramarina portuguesa, e na imprensa baiana e russa em defesa de Mário Pinto de Andrade, o Buanga Felê, ativista angolano e líder do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA).
"A liberação dos livros não garantia que de fato circulassem livremente. Na carta de Lyon de Castro, em julho de 1965, a notícia não era boa. Mar Morto estava sendo apreendido pela PIDE depois que fora autorizado pela Direção dos Serviços de Censura. Na mesma situação estava Os Pastores da Noite. Liberado até então em Angola, começou a ser censurado no país africano.
"Os relatórios logo mudariam o tom para referir-se a ele. Usava-se, como no Brasil, o termo 'aburguesado', e se contava que teria sido afastado do PCB - informação decerto imprecisa, pois o afastamento se deu por decisão de Jorge - e afinal um filho estava prestes a se casar com uma senhora portuguesa. Era apresentado como 'homem de meia-idade, muito rico, futuro Prêmio Nobel'. Sua casa era descrita 'como uma das mais lindas da Bahia, frequentada por gente ilustre, autoridades do Brasil e de Portugal'.
"Faltava suspender a proibição de décadas que impedia Jorge de pisar em Portugal. Consultado pelo editor, disse que só aceitaria ir se não fosse seguido. Em 1965, partiu da Bahia sem saber se conseguiria entrar no país. Quando embarcou no navio, tinha permissão do governo da Espanha, mas não do português. Esforços de Maria de Lourdes Belchior, adida cultural de Portugal no Brasil, e Odylo Costa, filho, adido do Brasil em Portugal, contavam a seu favor. Argumentaram que seria um escândalo proibir sua entrada já que a Espanha franquista deixava. O navio se aproximou do cais. Jorge divisou velhos e novos amigos: Álvaro Salema, Ferreira de Castro, Francisco Lyon de Castro. Teve permissão para desembarcar, mas foram proibidas notícias suas na imprensa. A visita foi discreta e vigiada. Por quarenta anos fora escritor maldito, havia receio de que fosse alvo de exaltação demasiada.
"A primeira viagem pública ocorreu poucos meses depois, em janeiro de 1966, e a polícia política sempre o acompanhava entre os autógrafos em Lisboa e no Porto. O editor promoveu na imprensa, colocou anúncio nos jornais. Na Sociedade Nacional de Belas-Artes, às três da tarde, a fila se estendia desde as onze da manhã. Cada leitor lhe contou uma história de como conseguiu exemplar de seus livros, levavam-nos aos montes para pedir autógrafo. Um deles confessou-lhe que os capítulos de Capitães da Areia eram transcritos em pequenos pedaços de papel passados de cela em cela. Num dos encontros inesperados com leitores, seria um dia abordado por Manuel Cabral, sobrinho-bisneto do padre Cabral, que lhe adivinhou o destino de escritor.
"Na pasta da PIDE, ficou registrada a indignação por tal liberalidade: em meio a recortes de vários jornais - Diário de NotíciasDiário Popular -, dizeres à mão. Numa notícia sobre a sua presença na Conferência Latino-Americana para Anistia de Prisioneiros e Exilados Políticos Espanhóis e Portugueses, em 1969: 'Da melhor e mais inteligente propaganda comunista! Onde está a verdadeira censura? Na Lua?!' Distribuíam-se desenhos como o símbolo da foice e do martelo, feito com caneta azul e vermelha.
"Novos admiradores se somaram aos antigos. Jorge se mantinha próximo dos comunistas portugueses, cujo partido era então fortemente reprimido. Aquela ideia do seu 'aburguesamento' não fazia tanto sentido em Lisboa, dado que ele povoava grandemente o imaginário oposicionista. Até os salazaristas gostavam dele. Franco Nogueira, o último ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar - o rosto internacional da política colonialista e de guerra do regime na África - e, posteriormente, biógrafo do ditador, dizia que o grande escritor surgiu no pós-Gabriela; antes, era o panfletário.
"Na primeira visita a Lisboa após a Revolução dos Cravos, em outubro de 1974, comemorava 'estar pela primeira vez num Portugal sem ditadura', 'ele, que durante décadas estivera proscrito do nosso país, que só conhecia Lisboa pelos telhados, vislumbrados de avião - essa Lisboa que ele sabia apenas dos livros do seu amado Eça de Queirós, e que, uma vez livremente franqueada, o fazia sentir-se em casa, lembrando-lhe a Bahia'. Em meio à alegria, havia uma razão para tristeza, relatava ao Diário de Notícias: a ausência de Ferreira de Castro, morto quatro meses antes. 'Reconfortou-me um pouco saber pelos nossos amigos comuns', afirmou Jorge, 'quanto ele vibrava de entusiasmo e de esperança nos dias que mediaram entre o 25 de Abril e o colapso que o derrubou. Ele foi um dos grandes mestres da vossa liberdade, da liberdade de todos os homens. O meu grande desejo é que o Portugal de amanhã, como o de hoje, prossiga e consagre a sua admirável lição'.
"As idas a Lisboa se tornaram frequentes: duas vezes por ano degustava sua ginjinha e escutava fados nas zonas históricas. Na ausência de Ferreira de Castro, Beatriz Costa continuou a ser cicerone, e logo o círculo de lugares e amigos se ampliou. No restaurante Amadora, no Parque Mayer, almoçavam caldo-verde e sarrabulho, queijo fresco, pão saloio e meloa. Quando apareciam brasileiros por lá, os donos perguntavam por Jorge, como se todos fossem íntimos. Um dia, o jornalista José Saramago, que ainda não se firmara como escritor, viu Jorge numa rua de Lisboa. O brasileiro estava rodeado de um grupo de escritores portugueses. Saramago quis estar ali, mas, encabulado, seguiu em frente, com pena de não poder cumprimentá-lo. Alguém o reconheceu e disse que se achegasse para ser apresentado. O pudor de Saramago foi maior que seu desejo: pensou que não tinha direito de molestar, quem era ele para interromper a conversa, assim foi que disse não, obrigado, e seguiu seu caminho."
Jorge Amado - Uma Biografia
Joselia Aguiar
Editora D. Quixote

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