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por deixar ao critério dos nossos visitantes a leitura do mesmo, bastando para
tal clicar onde diz: Ler mais
A vez em que Saramago não cumprimentou Jorge Amado
A brasileira Joselia Aguiar ocupou sete anos da
sua vida a investigar um dos escritores brasileiros mais lidos em todo o
mundo. Jorge Amado - Uma Biografia é o resultado dessa missão,
revelando o autor por completo. Leia a pré-publicação.
João Céu e Silva
27 Agosto 2019 — 00:01
José Saramago, José Cardoso Pires e Jorge Amado em
Lisboa.
A fotografia da capa da mais
recente biografia sobre Jorge Amado (1912-2001) mostra o escritor como os
leitores bem conhecem, mas Jorge Amado - Uma Biografia é muito
mais do que esta imagem de um homem numa praia da Bahia. É que Joselia Aguiar
mergulhou durante sete anos nesta investigação sobre o escritor, teve acesso
exclusivo a manuscritos inéditos, bem como a documentos de família e cartas de
amigos e de outros escritores, além de realizar uma série de entrevistas para
compor o retrato final.
É o caso de quando o autor quer
deixar o Rio de Janeiro e Joselia Aguiar descreve as peripécias da mudança: "O
velho sonho de Jorge Amado de ter uma casa na Bahia - para se mudar
definitivamente - começou a ser realizado." E acompanha esta
viagem biográfica sempre recheada de pormenores, neste caso a dificuldade em
comprar uma casa sem que o proprietário duplique o preço. Há outras questões
mais importantes, já que não faltam episódios críticos na sua vida, como o de
quando é exilado ou decide viver apenas da literatura.
Segundo a autora, esta biografia
tem um pouco mais de seiscentas páginas mas poderia ter o dobro "e ainda
assim ficaria coisa de fora". A razão desta dimensão está no facto de
Jorge Amado ter sido um dos escritores mais populares do Brasil - só foi
suplantado por Paulo Coelho - e traduzido em meia centena de países, sendo que
muitos dos seus romances tornaram-se sucessos ainda maiores após a adaptação a
televisão e ao cinema.
Numa entrevista, Joselia Aguiar
considerou que a trajetória política de Jorge Amado é paralela a vários
momentos da história do Brasil: "Na obra de memórias Navegação
de Cabotagem, ele refere-se aos livros de seu período mais comunista como
'tarefas partidárias'." Tanto assim que após esses "cadernos de
aprendiz" escritos na juventude, Joselia Aguiar explica que o grande salto
enquanto autor conhecido fora do seu país dá-se quando Jorge Amado decide
escrever uma biografia de Luís Carlos Prestes, o dirigente comunista
brasileiro, em 1942. É esse livro, O Cavaleiro da Esperança, que
"lhe abre portas e dá um determinado prestígio. Mas a obra de Amado já
circulava em França e nos Estados Unidos e era publicada por boas editoras.
Depois de ser impedido de continuar como deputado, em 1948, Amado vai para o
exílio e conhece os países do Leste, onde é muito lido".
A Gabriela Sónia Braga com o escritor Jorge Amado.
Após emancipar-se da doutrina
ideológica nos romances, a carreira de Jorge Amado tem um novo impulso, designadamente a partir do momento em que publica Gabriela,
Cravo e Canela. A presença de uma Bahia sensual misturada com os conflitos
entre trabalhadores e os donos das terras do nordeste não deixará de estar
presente em dois novos sucessos, Dona Flor e Seus Dois Maridos e Tereza
Batista Cansada de Guerra.
Para Joselia Aguiar, a biografia
que escreveu tem muito de inédito e fixa a cronologia de acontecimentos na vida
de Jorge Amado, mas não deixa de referir que "Jorge Amado é uma área de
investigação interminável, que ainda deve ser explorada em muitos campos".
A biografia tem múltiplas
referências a Portugal, como é o caso do capítulo 33 que o DN
pré-publica na semana em que a investigação de Joselia Aguiar chega às
nossas livrarias. Onde se recorda o episódio em que José Saramago queria
conhecer o brasileiro Jorge Amado mas teve vergonha de se intrometer.
Lisboa (capítulo 33)
"O jantar surpresa no aeroporto não era a única lembrança que Jorge guardava de uma Lisboa que lhe era proibida. Houve um encontro inesperado com a cidade, sem repercussão, tendo como única testemunha um incansável policial que permaneceu todo o tempo em seu encalço. Retornava de uma das viagens à Europa quando a companhia aérea escandinava SAS anunciou uma greve no meio da jornada. O avião deixou os passageiros na capital portuguesa, onde poderiam encontrar outros voos. Jorge descobriu que só conseguiria passagem para o dia seguinte, pela manhã. Levados para a imigração, os passageiros receberam visto para 24 horas.
"Um ônibus os levara para
um hotel do centro. Foram convidados pela SAS para um jantar numa casa de
fados. Pensou em telefonar para Álvaro Lins, agora embaixador do Brasil. Podia
ter ido a uma revista com Beatriz Costa, sua amiga. Diante da cidade interditada
e desejada, entretanto, decidiu 'andar pelas ruas'. Na portaria trocou
dinheiro, perguntou como ir até o Rossio, num caminho em que se sentia
'comovido com as cores, os cheiros e ruídos', prestou atenção em vitrines e
tabuletas. Na livraria, viu um exemplar de Degelo. Tinha entregado
a edição brasileira ao amigo russo. Encontrou também um livro de Cesário Verde,
seu poeta português preferido. Saiu para a praça do Comércio e notou o sujeito
de chapéu e gabardine em seu encalço - já avistara o tipo no saguão do hotel.
De volta ao Rossio, tomou café, se informou sobre Mouraria e Alfama. Por acaso,
avistou os companheiros de avião saltarem do ônibus em direção à casa de fados.
Voltou altas horas para o hotel. 'Nas ruas calmas e quase desertas de inverno',
entendeu que tinha sido 'um encontro de amor', 'com a mesma infinita emoção com
que se toca pela primeira vez o corpo de mulher desejada e proibida'. Pegou a
chave, dirigiu-se ao elevador e notou o sujeito de gabardine na porta. Teve
ímpetos de lhe acenar para se despedir. De manhã, quando se dirigiu ao ônibus
que os levaria até o aeroporto, estava lá de novo, na calçada. Sentou-se num
lugar dos fundos do veículo e acompanhou Jorge até a sala de trânsito do
aeroporto.
"Em Lisboa, logo deixaria
de ser contrabando literário. Para circular livremente,Gabrielafora seu
salvo-conduto. Francisco Lyon de Castro era o editor disposto a enfrentar as
autoridades portuguesas do salazarismo. De tão empenhado, recebeu primeiro
ameaça de fechamento de sua casa editorial. Um exemplar acabou ficando com os
homens do regime, e, quando menos esperavam, o livro foi liberado, contanto que
fossem trocadas certas palavras. Consultado, o autor aceitou substituí-las por
mais comportadas. Quem assinou o prefácio não foi outro senão Ferreira de
Castro. A primeira edição, de março de 1960, vendeu 10 mil exemplares. Em três
anos, seriam 17 mil. Com a aceitação do autor outrora proibido, outros livros
acabaram autorizados. Até 1982, seriam quinze edições de Gabriela,
110 mil exemplares vendidos. A mudança do conceito sobre o autor pode ser
comprovada nos pareceres da censura, os de antes e os de depois da liberação. A
história de sua proibição era longa. Antes, em 1951, Terras do sem-fim não
fora aprovado pelo major português David dos Santos, funcionário da censura: 'A
própria dedicatória do livro vale por todos os escritos e relatórios. A
comunista oferta e homenagens comunistas. Não se deve permitir a circulação
deste livro.' Na mesma data, sobre São Jorge dos Ilhéus, quem fez o
relatório de censura era o mesmo major: 'Este livro é dum categorizado
comunista brasileiro. O tema é - como se segue - explorar as desigualdades
sociais, com vista aos triunfos dos comunistas. Por esta razão julgo de
proibir.' No ano seguinte, em fevereiro, um novo leitor-censor, o tenente
Antonio Afonso Raposo, não era tão taxativo sobre Mar Morto:
'Romance que decorre entre marítimos e rameiras, tem passagens condenáveis mas
talvez não seja o suficiente para ser proibido.' No entanto a anotação e o
carimbo de autoridade superior não o liberaram. O parecer referente a Capitães
da Areia, datado do mesmo mês e ano, assinado de novo por Raposo, continua
a recusá-lo: 'Os capitães da areia são rapazes abandonados em número superior a
cem que vivem do roubo, do assalto e de todas as formas condenadas. Admiradores
do bandido Lampião. Nele existem todos os vícios postos a claro. No final do
livro já alguns são apresentados como agitadores e propagandistas perseguidos.
Entendo que deve ser proibido.' O carimbo referenda, com anotações:
'imoralidades e misérias sociais.'
"Uma obra como Os
Subterrâneos da Liberdade não receberia e avaliação diferente. De
abril de 1956, o parecer sobre o livro tem como autor o chefe da censura, J. B.
Pereira de Mello: 'É uma obra inteiramente de propaganda comunista, de
exaltação do comunismo brasileiro e do seu chefe Luís Carlos Prestes.
Parece-me, pois, de proibir sem hesitação.' Em fevereiro de 1957, o ABC
de Castro Alves não encontraria outra sorte; o texto do leitor Antonio
Borges Ferreira é mais longo: 'Jorge Amado é já conhecido como comunista ou
comunisante; portanto, apresentando este livro sobre Castro Alves - o cantor
dos escravos - torna-se apologista da obra do poeta, tendo em vista a grande
afinidade existente entre os dois - Jorge Amado e Castro Alves. Lendo vários
episódios deste livro, observa-se um realismo extraordinário, que roça, por
vezes, pela imoralidade. A cada passo se topa com sinais de revolta, muito e
muito do agrado do autor; pois se os temperamentos são semelhantes não é de estranhar
o amor manifestado pela vida e obra de Castro Alves. Em qualquer altura que se
abra este livro, vê-se logo a índole do autor. Por todas estas razões, sou de
parecer que o livro deve ser proibido de circular em Portugal.' Gabriela,
Cravo e Canela de início teria o mesmo destino. Assinado pelo leitor
Fernando Carvalho Tártaro, cuja patente não está identificada, o parecer diz, em
outubro de 1958: 'É um romance popular, passado nos princípios do século XX, de
sabor nativo, bastante imoral e algumas vezes obsceno, em que foca o panorama
excepcionalmente vivo dos Ilhéus e zonas adjacentes, na Baía [sic], na
sua fase de transição, baseadas em novas ideias orientadas pelo progresso.
Quadro de paixões políticas e lutas pelo poder entre 'coronéis' fazendeiros de
cacau, nativos e 'jagunços' (assassinos profissionais), cenas de adultério,
morte dos amantes pelo marido ultrajado, seus comentários; mas sendo talvez o
principal personagem Gabriela, a mestiça e os seus amores. Julgo não ser de
autorizar a sua venda.' O carimbo de autorização é de janeiro de 1960, desde
que sejam 'suprimidas expressões'.
Jorge Amado e Zélia Gattai no Porto em 2001.- © Fernando
Timóteo/Global Imagens
"A disposição passou a ser
outra depois que o autor foi liberado. 'Romance cem por cento brasileiro de
índole muito maliciosa em que são descritas algumas cenas pouco edificantes,
senão imorais', disse o leitor-censor Estevão Martins sobre Dona Flor,
em 1966. 'Porém a beleza da prosa e a delicadeza com que são apresentadas as
brejeirices forçam-nos a uma certa condescendência favorável na nossa
apreciação', aquiescia. 'Uma vez ou outra aparece uma palavra obscena, o que
aliás está muito em voga nos escritores da atualidade. Atendendo à categoria
literária do autor e ao fato de o livro ser volumoso e caro, o que de certo
modo só o torna acessível a adultos, e não a todos, proponho que este livro
seja autorizado.' Liberariam, em 1971, até mesmo o militante Seara
Vermelha, no relatório mais longo, com duas páginas, que se refere a
'tendências nitidamente esquerdistas'. 'As suas obras procuram focar temas
sociais do Brasil com um realismo (ou neorrealismo) talvez exagerado, o que o
leva a encará-las mais como obras de ficção do que como um retrato da vida
real.' Segue-se longa descrição do enredo. 'O gênio do escritor teceu esse
romance que, apesar de tudo e das denúncias de uma sociedade fortemente
capitalista no seu pior sentido, não deixa de ser encarado como romance, tanto
mais que as condições em Portugal, por piores que sejam, nem de longe se podem
comparar com as descritas pelo autor, no Brasil, daí que, em conclusão e em
minha opinião, não haverá grave inconveniente em que o livro em causa seja
autorizado a circular.' O leitor era o tenente-coronel Paranhos Teixeira.
"A ditadura portuguesa não
controlava apenas a obra de Jorge. Seus menores passos no país eram descritos
em relatórios de arapongas, recortes de jornais e revistas que engordavam a
pasta com seu nome na PIDE. Quando houve o Colóquio Luso-Brasileiro, na Bahia,
em setembro de 1959 - o mesmo evento em que Jorge pilheriou sobre os negócios
de Odorico Tavares no meretrício -, chamou a atenção do regime seu discurso,
que, como anotaram os espiões, fazia apologia do mundo afro-brasileiro e
funcionava como libelo contra o Portugal oficialista, cuja delegação era chefiada
pelo ministro Marcelo Caetano. A PIDE via o escritor como um dos mais
importantes agentes de ligação entre os partidos da América Latina e Moscou.
Até à década de 1950, os agentes de Salazar acreditavam que, mesmo nunca tendo
ocupado cargo dentro do PCB, Jorge atuava como conselheiro do secretário-geral
do partido e portador de instruções de Moscou para o Brasil nas suas frequentes
viagens pelos países da Cortina de Ferro, sobretudo como membro diretivo do
Conselho Mundial da Paz.
"O distanciamento do
partido não diminuiu a espionagem. Nos registros da década de 1960, consta a
criação do Movimento Afro-Brasileiro Pró-Libertação de Angola - então colônia
portuguesa -, no qual Jorge se destacava como um dos integrantes. Os encontros
que ele e Eduardo Portella tinham no Rio com intelectuais e ativistas de Angola
eram acompanhados de perto, com fotos. A polícia política portuguesa recebia do
Brasil cópias de artigos e discursos, como os que Jorge escreveu na
revista Tempo Brasileiro, fundada por Portella, contra a política
ultramarina portuguesa, e na imprensa baiana e russa em defesa de Mário Pinto
de Andrade, o Buanga Felê, ativista angolano e líder do Movimento Popular de
Libertação de Angola (MPLA).
"A liberação dos livros não
garantia que de fato circulassem livremente. Na carta de Lyon de Castro, em
julho de 1965, a notícia não era boa. Mar Morto estava sendo
apreendido pela PIDE depois que fora autorizado pela Direção dos Serviços de
Censura. Na mesma situação estava Os Pastores da Noite. Liberado
até então em Angola, começou a ser censurado no país africano.
"Os relatórios logo
mudariam o tom para referir-se a ele. Usava-se, como no Brasil, o termo
'aburguesado', e se contava que teria sido afastado do PCB - informação decerto
imprecisa, pois o afastamento se deu por decisão de Jorge - e afinal um filho
estava prestes a se casar com uma senhora portuguesa. Era apresentado como
'homem de meia-idade, muito rico, futuro Prêmio Nobel'. Sua casa era descrita
'como uma das mais lindas da Bahia, frequentada por gente ilustre, autoridades
do Brasil e de Portugal'.
"Faltava suspender a
proibição de décadas que impedia Jorge de pisar em Portugal. Consultado pelo
editor, disse que só aceitaria ir se não fosse seguido. Em 1965, partiu da
Bahia sem saber se conseguiria entrar no país. Quando embarcou no navio, tinha
permissão do governo da Espanha, mas não do português. Esforços de Maria de
Lourdes Belchior, adida cultural de Portugal no Brasil, e Odylo Costa, filho,
adido do Brasil em Portugal, contavam a seu favor. Argumentaram que seria um
escândalo proibir sua entrada já que a Espanha franquista deixava. O navio se
aproximou do cais. Jorge divisou velhos e novos amigos: Álvaro Salema, Ferreira
de Castro, Francisco Lyon de Castro. Teve permissão para desembarcar, mas foram
proibidas notícias suas na imprensa. A visita foi discreta e vigiada. Por
quarenta anos fora escritor maldito, havia receio de que fosse alvo de
exaltação demasiada.
"A primeira viagem pública
ocorreu poucos meses depois, em janeiro de 1966, e a polícia política sempre o
acompanhava entre os autógrafos em Lisboa e no Porto. O editor promoveu na
imprensa, colocou anúncio nos jornais. Na Sociedade Nacional de Belas-Artes, às
três da tarde, a fila se estendia desde as onze da manhã. Cada leitor lhe contou
uma história de como conseguiu exemplar de seus livros, levavam-nos aos montes
para pedir autógrafo. Um deles confessou-lhe que os capítulos de Capitães
da Areia eram transcritos em pequenos pedaços de papel passados de
cela em cela. Num dos encontros inesperados com leitores, seria um dia abordado
por Manuel Cabral, sobrinho-bisneto do padre Cabral, que lhe adivinhou o
destino de escritor.
"Na pasta da PIDE, ficou
registrada a indignação por tal liberalidade: em meio a recortes de vários
jornais - Diário de Notícias, Diário Popular -,
dizeres à mão. Numa notícia sobre a sua presença na Conferência
Latino-Americana para Anistia de Prisioneiros e Exilados Políticos Espanhóis e
Portugueses, em 1969: 'Da melhor e mais inteligente propaganda comunista! Onde
está a verdadeira censura? Na Lua?!' Distribuíam-se desenhos como o símbolo da
foice e do martelo, feito com caneta azul e vermelha.
"Novos admiradores se
somaram aos antigos. Jorge se mantinha próximo dos comunistas portugueses, cujo
partido era então fortemente reprimido. Aquela ideia do seu 'aburguesamento'
não fazia tanto sentido em Lisboa, dado que ele povoava grandemente o
imaginário oposicionista. Até os salazaristas gostavam dele. Franco Nogueira, o
último ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar - o rosto internacional da
política colonialista e de guerra do regime na África - e, posteriormente,
biógrafo do ditador, dizia que o grande escritor surgiu no pós-Gabriela;
antes, era o panfletário.
"Na primeira visita a
Lisboa após a Revolução dos Cravos, em outubro de 1974, comemorava 'estar pela
primeira vez num Portugal sem ditadura', 'ele, que durante décadas estivera
proscrito do nosso país, que só conhecia Lisboa pelos telhados, vislumbrados de
avião - essa Lisboa que ele sabia apenas dos livros do seu amado Eça de
Queirós, e que, uma vez livremente franqueada, o fazia sentir-se em casa,
lembrando-lhe a Bahia'. Em meio à alegria, havia uma razão para tristeza,
relatava ao Diário de Notícias: a ausência de Ferreira de Castro,
morto quatro meses antes. 'Reconfortou-me um pouco saber pelos nossos amigos
comuns', afirmou Jorge, 'quanto ele vibrava de entusiasmo e de esperança nos
dias que mediaram entre o 25 de Abril e o colapso que o derrubou. Ele foi um
dos grandes mestres da vossa liberdade, da liberdade de todos os homens. O meu
grande desejo é que o Portugal de amanhã, como o de hoje, prossiga e consagre a
sua admirável lição'.
"As idas a Lisboa se
tornaram frequentes: duas vezes por ano degustava sua ginjinha e escutava fados
nas zonas históricas. Na ausência de Ferreira de Castro, Beatriz Costa
continuou a ser cicerone, e logo o círculo de lugares e amigos se ampliou. No
restaurante Amadora, no Parque Mayer, almoçavam caldo-verde e sarrabulho,
queijo fresco, pão saloio e meloa. Quando apareciam brasileiros por lá, os
donos perguntavam por Jorge, como se todos fossem íntimos. Um dia, o jornalista
José Saramago, que ainda não se firmara como escritor, viu Jorge numa rua de
Lisboa. O brasileiro estava rodeado de um grupo de escritores portugueses.
Saramago quis estar ali, mas, encabulado, seguiu em frente, com pena de não
poder cumprimentá-lo. Alguém o reconheceu e disse que se achegasse para ser apresentado.
O pudor de Saramago foi maior que seu desejo: pensou que não tinha direito de
molestar, quem era ele para interromper a conversa, assim foi que disse não,
obrigado, e seguiu seu caminho."
Jorge Amado - Uma Biografia
Joselia Aguiar
Editora D. Quixote
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