CLÁUDIA SOUSA PEREIRA
Agustina
Passou definitivamente à eternidade Agustina Bessa-Luís. Agustina
foi, talvez, o nome maior vivo que muitos de nós estudámos na escola. Ainda que
ali, na escola, os escritores canónicos apareçam muitas vezes como gente sem
existência real, tornados eles próprios figuras de uma ficção que é a vida
daqueles que parece que não se cruzam nunca connosco, nas nossas vidas. A
Sibila foi o seu romance que a popularizou entre os alunos, gostassem ou não da
obra, o que muito depende, nestes casos, de quem é seu mediador. Tive a sorte
com quem me ensinou a lê-la. Aprendi com ela, Agustina vertida em sibila
naquele romance, o quanto o conhecimento do comportamento das pessoas é um dom
que podemos adquirir se para isso estivermos predispostos. Adivinhar o que
alguém vai dizer ou fazer resulta da capacidade de saber ler esse e outros
alguéns. Não sendo uma feminista, a sua perspectiva sobre a realidade e os
mundos que criou tinham essa marca do feminino. Dava força às
personagens-mulher e isso era colocá-las num centro de valores maiores.
Vou deixar aqui o
excerto dessa Sibila de 1954, não porque tenha sido o livro de que mais gostei,
mas porque é a figura feminina que narrou, da sua galeria de personagens, que
mais me marcou:
“Assim decorreu a
noite, a vela ficou reduzida, queimou uma borda do seu encaixe de papel, para
continuar depois a arder, imóvel, ovalada, como a chama do Espírito Santo.
Quina abriu os olhos, e disse em voz audível algumas palavras que não eram
delírio, nem oração, porque o tempo de oração estava no fim, e toda a sua alma
se projectava num abismo inefável, se dispersava para entrar na composição
magnífica do cosmos. Um sentido, nela, permanecia cintilante e que, portanto,
sofria – era o amor, era a sua inesgotável dádiva de ternura, que sempre
timidamente desviara da terra, para confiar ao mistério, ao que não é mesmo
esperança, e que jamais trai e engana. Os passos ouvia-os agora mais
sonoramente; eles vinham, e todas as portas se abriam à sua frente. Como
repeli-los e como não amá-los também? Sentiu que os joelhos se lhe esfriavam e
como que um banho de gelo a ia atingindo até à cinta, e subindo; as mãos
guardavam algum calor, mas não as movia mais. Um sopro mais brusco do vento fez
entreabrir as portadas da varanda, e Quina, num último olhar, abrangeu aquele
céu esverdeado do amanhecer e que era imenso, e que, como em ondas do espaço,
continuava mesmo através dos mundos, das estrelas vivas ou extintas. Os seus
lábios emudeceram, e o som dos passos deteve-se, por fim, sobre o seu coração.
A mão, um instante depois, deslizou e ficou fora do leito, com a palma voltada
para cima, numa atitude toda confiante no seu abandono, cortando de través o
bastãozinho de luz que escorria sempre, sereno, até à porta; via-se-lhe no
pulso a mancha arruivada, que ela, no mais inviolável segredo de si própria,
acreditara sempre uma marca de predestinação.”
Até para a
semana.
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