CLÁUDIA SOUSA PEREIRA
Miguel, o instinto e o século
XXI
Dez jovens resolveram praticar, e não apenas apregoar, a
solidariedade. Aderiram a uma causa, integraram uma ONG e lançaram-se ao
Mediterrâneo para salvar vidas. Suponho que uma ONG não seja um clube de jovens
de bairro que se reúne num pátio abrigado entre prédios e que cumpra uma série
de regras, legalmente enquadradas, para actuar ao lado de instituições
governamentais que, como todos sabemos, também fazem turnos com o mesmo
objectivo naquele mesmo Mar. Esses jovens cumpriram a missão a que se
propuseram e, suponho outra vez, que não terão andado pelo Mar Mediterrâneo a
piratear nem a conviver alegremente com traficantes de matéria ilícita. Como já
aconteceu, em histórias até passadas ao cinema em que endinheirados jovens
aventureiros ocidentais se metiam em “filmes” pouco recomendáveis em qualquer
parte do Mundo e duramente penalizados nesses cenários exóticos. Eis senão
quando, o governo de um dos países que mais tem visto chegarem até si esses milhares
de refugiados, o que cria sérios problemas de acolhimento a requererem outras
acções solidárias ao mais alto nível, começa a resolver o problema que tem
entre mãos da forma que normalmente ouvimos propor como solução a, por exemplo,
frequentes comentadores das Redes Sociais. Falo dos desabafos ao estilo
“deixá-los morrer”, que “ficassem na terra deles, porque na nossa já temos
problemas que cheguem” e outras exclamações dissonantes de quem talvez até vá a
pé a Fátima, ou qualquer outro santuário. E alguns até, devotamente, montarão o
presépio dos refugiados mais adorados, pelo menos uma vez por ano por alturas
do Natal.
O Miguel Duarte
foi um desses jovens. Só o conheci, provavelmente como a quase totalidade dos
seus conterrâneos, por causa do vídeo no YouTube que circulou nas Redes
Sociais, apelando em letras pequenas ao crowdfunding, suponho, mais uma vez,
que para despesas com custas judiciais. Não podemos senão indignar-nos perante
a ameaça que paira nos desenvolvimentos deste processo levantado por um Estado
democrático da mesma União Europeia a que pertencemos (e mesmo isso devia ser
só um detalhe), a Itália, a cidadãos que se organizaram para ajudar até
iniciativas governamentais. Estranho apenas que a primeira vez que tenha ouvido
falar do caso tenha sido através do Messenger. O que falhou entretanto? Ou não
houve “entretanto” e o Miguel, como provavelmente ou não os outros nove
elementos constituídos arguidos, lançou-se directamente para o YouTube? Será
esta a nova forma para contornar burocracias na geração que “vive na nuvem”? A
ser, e a par do bom humano instinto de salvar a vida do próximo em perigo, pode
tornar-se num perigoso instinto de interacção com as instituições que se
confunda e se nivele a outro tipo de iniciativas menos sujeitas a uma
imperativa acção político-diplomática, como esta.
O caminho
aparentemente directo das Redes Sociais à Assembleia da República com
bifurcação para o governo parece-me um curto-circuito perigoso e pouco
recomendável. E sinal de que várias coisas, a vários níveis estão a falhar. E
não apenas a eleição democrática dos “Salvinis” deste Mundo, supomos mais uma
última vez, mesmo havendo ardilosas coincidências entre esses eleitores e
certos utilizadores das Redes Sociais. Até para a semana.
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