segunda-feira, 13 de maio de 2019

MEMÓRIAS CURTAS - Rubrica mensal do Prof, Vitor Guita

Páscoa rima com Aleluia e Ressurreição; rima com ovos e amêndoas, com bolo branco, requeijão e assado de borrego comido no campo. Páscoa rima com festa e pode até rimar com chocalho. Pela Páscoa, já uma vez aqui o dissemos, a rapaziada tinha por hábito aglomerar-se à porta da Igreja Matriz. Assim que rebentava a Aleluia, os sinos repicavam festivamente e os gaiatos comandados pelo tio Ventaneira, desatavam numa alegre e contagiante algazarra, agitando freneticamente os chocalhos. Aleluia! Aleluia!
A partir dos anos cinquenta, esse hábito chocalheiro de festejar a Ressurreição de Cristo foi-se desvanecendo, assim como se foi esfumando a arte de fazer chocalhos.
A propósito de chocalhos, quisemos conhecer melhor o modo de os fabricar e outras curiosidades que giram à sua volta. Por vezes, sabemos tão pouco acerca das coisas simples da vida.
Marcamos encontro com Joaquim Guerreiro, popularmente conhecido por Quim das Peles. Foi ali sentados à porta da sua loja, no antigo Largo dos Chões, que nos pusemos, também nós, a badalar.
O Quim pertence a uma família de chocalheiros, natural das Alcáçovas. A oficina do primo Gregório Guerreiro Sim-Sim é das poucas que se mantem em funcionamento. Na vila alentejana há memórias de ter havido perto de uma vintena de artesãos que se dedicavam à actividade. Restam já bem poucos.
A preocupação com o fim desta arte ancestral levou  a Unesco, em 2015, a classificar os chocalhos como Património Cultural Imaterial da Humanidade com necessidade de salvaguarda urgente.
Aos sete ou oito anos, o pequeno Joaquim Guerreiro começou a amassar barro  juntamente com palha moída para embarrar os chocalhos. À primeira vista, pode parecer que os mais velhos se aproveitavam do trabalho infantil. Porém, para a rapaziada, era quase uma paródia a agradável sensação de meter as mãos na terra argilosa e húmida.
O fabrico artesanal dos chocalhos exige uma técnica algo complicada. Não é qualquer um que consegue extrair do metal tão diferentes sonoridades. O segredo da musica está nas sábias pancadas que só os Mestres sabem como fazer.
Quase em jeito de receita, dir-lhe-emos, caro leitor, que cada chocalho começa por ser talhado em folha de ferro e enrolado de forma cilíndrica na bigorna. Em seguida, no interior do chocalho, preara-se o “céu” onde vai ficar pendurado o badalo e, no exterior, aplica-se a asa por onde irá passar a coleira. A tarefa seguinte passa por revestir interna e externamente o cilindro de ferro com outro tipo de metal, envolvendo-se depois tudo em barro amassado. Depois de embarrado, o chocalho é metido na forja, alimentada a carvão de pedra. É esse outro metal (pedaços de cobre, bronze, latão) que depois de aquecido e derretido, irá unir todas as juntas e dar a cor acobreada ao chocalho. Quando atinge a cor rubra, o chocalho é retirado do lume, rebolado cá fora e molhado para arrefecer. O barro cozido ou cascalho é depois partido e removido, havendo necessidade de tirar, com a grosa, algumas irregularidades do metal.
Finalmente o chocalho é levado de novo à bigorna onde o artesão, com suaves pancadas procede à sua afinação.
A conversa encaminhou-se, de seguida, para os diversos tipos de chocalho e para outras particularidades que queríamos conhecer.
Como é sabido, esses instrumentos sonoros servem, acima de tudo, para serem colocados ao pescoço de certos animais. Um dos objectivos é localizar o paradeiro das reses, em particular quando elas se tresmalham de noite.
Há chocalhos pequenos, muito utilizados em cabras e ovelhas que aqui, na nossa região receberam o nome de piquetes.
Há os de maior dimensão reconhecidos por serranas ou beiroas, pendurados nos pescoços de vacas e bois. Existem também os reboleiros, chocalhos mais bojudos na parte superior. Há-os ainda com badalo de metal ou de madeira.
Na nossa memória, permanece gravado um outro nome que, quando eramos miúdos, ouvíamos pronunciar aos mais velhos e a que achávamos muita graça. Eram os trabucos ou traboucos, que eram postos ao pescoço das vacas mais gulosas. Era preciso evitar que as atrevidas comilonas entrassem nas verdes searas ou nas zonas de montado cujas bolotas estavam guardadas para os suínos.
Consoante a época do ano (inverno, primavera ou verão), havia quem fizesse três mudas de chocalhos.
A conversa acerca da diversidade chocalheira não se ficou por aqui. O amigo Joaquim Guerreiro foi-nos mostrar diferentes exemplares em metal fundido, mais robustos. Outro tipo de fabrico. É o caso dos esquilos, dos esquilões, dos guizos ou cascavéis. Merecem destaque especial os chamados guizos de coroa.
Por momentos vem-nos à lembrança a música alegre e cadenciada das guizeiras muito utilizadas nas parelhas, e a sinfonia estridente que era a correria de um rebanho de ovelhas com esquilos ao pescoço.
Acresce ainda dizer que cada chocalho deve ter a marca do artesão, como se da sua assinatura se tratasse. Também algumas casas agrícolas que encomendavam chocalhos faziam questão de neles mandarem inscrever o ferro da casa.
O assunto afigurava-se-nos quase inesgotável. Ás duas por três, ficamos com a sensação de que a conversa também se queria tresmalhar.
Apesar de ser familiar de chocalheiros, Joaquim Guerreiro enveredou mais pelo negócio das peles. Não bastava ser sobrinho ou rimo direito de chocalheiro. A transmissão da arte foi feita, ao longo dos tempos, de pais para filhos.
O trabalho com as peles acaba por estar relacionado com o mundo dos chocalhos, se pensarmos, por exemplo, no fabrico das coleiras.
Á porta da sua loja, o amigo Guerreiro tem pendurado e espalhado pelo chão uma remessa de chocalhos e coleiras, à mistura com peles variadas e outros artigos de artesanato. Guarda também em caixas e gavetas, peças que já vão sendo raridades.
Antigamente, em vez de fivelas de metal para prender as coleiras, utilizavam-se muito as cáguedas talhadas em madeira pelos pastores. Algumas eram verdadeiras obras de arte. Havia ainda quem se servisse das meãs, correias que serviam para prender as duas partes da coleira.
As coisas que a gente aprende neste mundo das peles e dos chocalhos!
Brinca, brincando há perto de sessenta anos que Joaquim Guerreiro prepara artesanalmente e negoceia peles. A profissão tem os seus segredos. Ao apalpar uma pele fina, se esta resmalha, é sinal de fraca qualidade. Se é macia e não resmalha, significa que está bem curtida. Dito assim parece fácil. Ficamos depois a saber que as peles grossas se compram e vendem ao quilo, e que o pé é a unidade de medida para negociar uma pele fina.
O tema dos chocalhos, dos rebanhos e seus pastores, conjuntamente co a bátega de água que caía à hora em que ultimávamos estas Memórias, remeteram-nos para a poesia de Alberto Caeiro, um dos heterónimos de Fernando Pessoa:
“Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar
Toda a paz da natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
…………………………………………….
Como um ruido de chocalhos
Para alem da curva da estrada
Os meus pensamentos são contentes
Só tenho pena de saber que eles são contentes
Porque se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.
Vitor Guita
Abril 2019
Publicado in “Montemorense” transcrito com autorização do Autor

1 comentário:

Anónimo disse...



OBS.


Excelente composição sobre os Chocalhos enquanto Património de Humanidade

e sobre a Arte dos artesãos que compõem o passado e o presente do Alentejo.

O entrecho desta descrição, com um agradável sabor e lastro literário,

merece daqui um Elogio dizendo ao seu Autor, um Muito Obrigado.


Cumprimentos


Antonio Neves Berbem