CLÁUDIA SOUSA PEREIRA
Os democratas
A viagem era curta e pouco amiga do ambiente. Curta porque foram
muitos quilómetros feitos em pouco mais de 30 minutos. Pouco amiga do ambiente
porque parece que, afinal, tudo o que vai para além do ritmo natural de um ser
vivo pode ter um impacto negativo no que está à sua volta. Embora, depois da
histeria gasolineira da semana passada, comece a pensar que antes de que a
Natureza alguma vez retalie sobre o ser humano, já os seres humanos, de uma
forma ou outra, se tramaram uns aos outros, aos poucos. E tudo bastante ajudado
pela estupidez de muitos mais do que só aqueles que, nada tendo de estúpidos,
apuram, com o aplauso desses, o dom da manipulação. Mas voltemos ao dia daquele
vôo.
A revista mensal
de Abril da transportadora aérea que nasceu nacional trazia, como é agora
costume neste mapa contemporâneo em que aparentemente têm lugar de destaque
todos os ofícios humanos que possam ser transaccionados, um texto de autor de
literatura. Gonçalo M. Tavares, em formato edição bilingue, ocupava a página
ímpar de um par delas que se enchia com título, autor e imagens trabalhadas. E
o que me chamou a atenção, não fosse só o nome do autor que se reconhece com
gosto, foi o título do texto: “Conversa sobre democracia, num banco de jardim”.
Quem conhece o
Gonçalo M. Tavares reconhece sem estranheza a sua maneira de arrumar os sons
nas palavras, as palavras nas frases, as frases no texto que criam ali no papel
a imagem do que se vê e ouve naquele mundo imaginado. Mas ouvir uma conversa de
jardim sobre Democracia em Abril, nas nuvens, pode ser surpreendente.
Agradavelmente surpreendente. Depois recorda-se que, de um dos livros folheados
do autor, aquele texto não era afinal estranho. O livro de onde saía era sobre
uma viagem também, com conversas entre um eu e outro eu, parecia-me. Mas ali,
numa revista que vende como destino de fugas paradisíacas lugares onde, apesar
disso, vive e se governa gente, parecia estranho.
É o mês de Abril
em Portugal e soa-me muito bem aquele pedaço de boa prosa em português a
misturar-se com personagem de nome estrangeiro de referência mítica e a dizer
coisas tão acertadas como só os que conhecem o poder das palavras sabem dizer e
ler. E cito a frase que encerra o texto e que me acorda a por vezes tão
dormente boa esperança ao aterrar em Portugal no cabo da viagem: “A decisão
política de um democrata, diz Jonathan, é o ato do corpo que envolve mais
sentidos humanos: além dos cinco habituais, ainda o sentido de justiça.”
E eu apercebo-me
de que não é com abraços, beijinhos e olhos em alvo numa máscara de lírio
pendente na cara que se fazem os democratas. E que é o tempo de perceber
porque, ainda assim, teremos de continuar a repetir: “25 de Abril sempre!”
Até para a
semana.
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