CLÁUDIA SOUSA PEREIRA
À sombra de uma azinheira
As crónicas da Diana não são espaço de crítica de livros. Antes
pressupõem, e muito bem, a visão política e sobre a Política. Mas eu, que por
feitio profissional, me movo no mundo dos livros que são feitos por e para
pessoas, não consigo deixar de usar amiúde os vasos comunicantes que ligam a
Política às Literaturas. Utilizo o plural numa, porque o sistema cultural em
que a arte verbal acontece é também plural. Mas mantenho o singular noutra,
pois ela é aqui sinónimo de uma visão de princípio para a governação do Mundo,
independentemente das particularidades que há, bem entendido, nas diversas
circunstâncias em que é preciso actuar para que “a Cidade” se organize e
funcione o mais harmoniosamente possível. Posto isto, a crónica de hoje que
prepara Maio, mês também do trabalhador, é crónica inspirada em livro.
Motivos vários
quiseram que atrasasse a leitura de um certo livro até há uma semana, apesar da
amizade e consideração que me liga ao seu autor. O propósito da sua escrita foi
por si bem enquadrado quer de viva voz comigo, quer aos microfones desta Diana.
Após a leitura fica-me o lamento que o trabalho de quem se diz Editora seja
igual a zero. Uma negociata, a destas “editoras-vaidade” como a Literatura a
sério bem lhes chama, que tende a atirar para o lixo o que não é. Só vêem até
ao seu bolso e desmerecem o valor, sobretudo simbólico, que o livro tem e
deverá continuar a ter para autores e leitores. Uma questão de respeito,
seriedade, cuja ausência não consigo ultrapassar nem calar. É tantas vezes assim
que se mata à nascença algo que podia ter uma longa e boa vida para além do
circuito que se deixa ficar pequenino e pouco faz em prol do público. Enfim,
avancemos.
Logo a abrir a
prosa que nasce da memória, entramos precisamente num mês de Maio, Alentejo
geograficamente profundo, debaixo de um daqueles calores que, inenarráveis,
encontram nesta escrita as imagens (com cheiro, som e temperatura) certas e
próprias de quem as sentiu mesmo. Através das páginas do livro vamos entrando
num mundo simultaneamente conhecido e ficcionado, íntimo e colectivo, próprio e
de tantos outros de uma geração que nasceu na segunda metade do chamado Século
do Povo. Se a vila alentejana é o lugar paradisíaco da infância, como são todos
os das infâncias felizes, é também o lugar de purgatório para os que não têm ou
a sorte ou a oportunidade de fazer a sua própria sorte, seja por que motivo
for, pessoal, familiar, social. E quase tudo ao ritmo do comboio, esse símbolo
do progresso que para alguns está só de passagem e pouco adianta às vidas.
Pouco mais que um relógio, um calendário, uma carta ou uma carroça que leva e
traz notícias e gente dentro.
O que me
sensibilizou neste retrato ficcionado e tão realista de um Alentejo foi o quão
paradigmático é deste lugar ao Sul. A galeria de personagens tão autenticamente
atraentes, o que não tem só a ver com os modelos inspiradores, mas sobretudo
com o afecto genuíno de quem verte memórias na escrita e homenageia lugar e
almas. Ficamos a perceber melhor por que um homem dedica uma vida a querer
partilhar esforços e sucessos com o “seu” colectivo. E como o lugar da escrita,
e desta literatura autobiográfica e memorialista, é um comovente momento e
monumento de homenagem a um certo povo não tornado massa informe e manipulável
a que muitas vezes, hipocritamente, se dá o nome de Povo, assim com maiúscula.
Se o livro traz
“a peso” o progresso que o comboio representa, o que impressiona é como nada
disso parece, até aos dias de hoje, arredar das pessoas dali que é também o
aqui, para o bem e para o mal, uma mentalidade que tem dificuldade, ou que em
sentido contrário tem é mesmo vontade e faz por isso, em deixar de querer viver
a vida “à sombra de uma azinheira”. Que o progresso não precise que um dia se
lhes arranque a azinheira, e que a vida fora da sua sombra lhes dê a força, só
e muito sua, para de lá sair, desse tempo mítico da infância também de uma
sociedade democrática construída por todos e não só por, e consequentemente
para, alguns. Que Maio também sirva para pensarmos nisto.
Até para a semana.
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